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Edição 105 - Especial Dia do Professor-2014
01/10/2014
 
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Maria Isabel da Cunha (Unisinos): “Os estudantes merecem professores que encontram sentido no seu fazer”

Maria Isabel diz que os professores devem sentir orgulho da profissão, pois ela é da maior importância

Maria Isabel diz que os professores devem sentir orgulho da profissão, pois ela é da maior importância

Autor: Arquivo pessoal


Docente titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo (RS), Maria Isabel da Cunha é professora aposentada da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), onde foi pró-reitora de graduação e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação. Autora de livros, com grande experiência na área da educação – completará 50 anos de magistério em 2015 –, Maria Isabel desenvolve pesquisa sobre prática pedagógica e formação do educador. E tem um recado aos jovens professores: “Permaneçam na profissão se encontrarem sentido na mesma. Senão, devem procurar alternativas”. Segundo ela, “os estudantes merecem professores que encontram sentido no seu fazer”.

Com graduação em ciências sociais e em pedagogia pela Universidade Católica de Pelotas, tem mestrado em educação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul e doutorado em educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Jornal do Professor Em sua tese de doutorado, a senhora abordou o tema A Prática Pedagógica do Bom Professor: Influências na sua Formação. O que é necessário para ser um bom professor?

Maria Isabel da Cunha – O que me estimulou a realizar o estudo foi a intenção de alterar a lógica tradicional da pesquisa e da formação, que por longo tempo definia modelos teóricos de bom professor, com a descrição de um perfil ideal e, a partir daí, procurava aproximar os sujeitos concretos a essa idealização. Esse exercício se mostrava sempre frustrante, pois não levava em conta a história de vida dos professores, nem as circunstâncias em que aninhava sua ação. Resolvi, então, inverter essa ordem. Ou seja, identificar professores que os estudantes consideravam como bons e estudar suas práticas e formas de produção de seus saberes. Esse estudo foi realizado no final dos anos 1980 e se instituiu numa das primeiras pesquisas de cunho qualitativo e etnográfico sobre o professor, no cenário nacional. A intenção não foi criar um modelo de docência, mas valorizar os saberes docentes, produzindo uma teoria a partir da prática. Atualmente, muitos dos achados que, na época, foram surpreendentes já se instituíram como referentes da pesquisa sobre a docência.

Em sua carreira como professora universitária e pesquisadora, a senhora tem se interessado, de maneira especial, pelo tema formação de professores. Como está a formação de professores em nosso país, de maneira geral? O que poderia melhorar?

– Há uma vastíssima produção de estudos e pesquisas sobre a formação de professores no Brasil. Seu conteúdo foi acompanhando a evolução da compreensão do que se entende por formação. Com base na racionalidade técnica, acreditávamos que a formação consistia numa oferta de conhecimentos disciplinares aos futuros professores, que deveriam assimilá-los da melhor forma possível para, logo então, aplicá-los numa situação de prática. Essa era entendida como aplicação linear da teoria e, por isso coroava, através do estágio, a trajetória curricular. Esse modelo clássico de formação sempre se mostrou questionável, pois mesmo os alunos que obtinham boas notas nas disciplinas teóricas sentiam-se inseguros para enfrentar a prática profissional. Essa constante insatisfação provocou uma ruptura epistemológica, a partir do entendimento de que a prática é muito mais complexa e exigente do que a aplicação linear da teoria e que pode e deve ser o ponto de partida da aprendizagem.

Se a compreensão do que seja formação baliza os formatos que damos aos cursos que formam professores, vemos que hoje avançamos nos desenhos curriculares da formação inicial que inserem práticas precoces durante todo o currículo. Favorecem, assim, que o estudante vá se inserindo aos poucos na profissão, através da observação em situações reais no universo escolar. Entretanto, as estruturas acadêmicas ainda dificultam uma perspectiva integrada dos cursos de licenciatura, em geral repartidos entre os responsáveis pela parte do conteúdo específico da formação e aqueles que se encarregam da formação pedagógica. Essa condição, já denunciada intensamente pelos discursos educacionais, ainda não encontrou guarida na prática da formação. Além disso, com a atual política de valorização dos títulos de mestre e doutor para ingresso no magistério superior, há muitos professores de cursos de licenciatura que não têm experiência na docência da educação básica e nem sequer incluíram estudos das matérias pedagógicas em sua formação. Como, então, estarão aptos a formar professores? Esse cenário se aguça quando consideramos a pouca motivação dos jovens estudantes com a profissão docente, que não apresenta perspectivas de estímulos e valorização. Acorrem aos cursos de licenciaturas muitas vezes por falta de outra opção e muitos não têm a intenção de ingressar na carreira.

Na minha opinião, pois, a fragilidade da formação inicial de professores não está especialmente nos desenhos curriculares, mas na estrutura acadêmica, na formação dos formadores e no desprestígio profissional do magistério.

Quanto à formação em serviço, creio que, como toda a profissão, essa é uma condição inevitável. A docência é uma profissão complexa, que exige múltiplos saberes e está sujeita aos movimentos e contextos epistemológicos, tecnológicos, políticos e sociais. Portanto, o professor deve ser um sujeito aprendente, para fazer o mesmo com seus alunos. Entretanto essa condição exige, também, uma escola aprendente. Ou seja, um ambiente que abrigue uma comunidade de aprendizagem, que valorize os saberes que os próprios professores produzem, acompanhados de um processo de reflexão e teorização sobre a prática. Nessa perspectiva, é fundamental apostar na condição intelectual do professor e estimular sua autonomia, dando-lhe responsabilidade e cobrando-lhe responsabilidade. Em outras palavras, valorizar a sua profissionalidade. Infelizmente, as políticas governamentais nem sempre têm ido nessa direção, infantilizando o professor através de materiais instrucionais predefinidos, como se ele não fosse capaz de tomar decisões sobre seu fazer profissional. Mais adequado seria respeitar e estimular a escola como um espaço de produção de conhecimento, onde o desenvolvimento profissional dos professores acompanhasse a qualidade esperada do seu trabalho.

Uma palavra importante, ainda, vai para ressaltar a importância de um acompanhamento aos professores iniciantes. É necessário reconhecer que há uma fase de transição entre a formação inicial e o princípio da carreira docente. Muitos países já reconheceram essa fase como uma destacada etapa, que exige inversão de recursos e cuidados institucionais. Dela depende uma significativa parte da continuidade da docência e do seu êxito. E os professores experientes podem ser um significativo apoio a esses programas. Ambos aprenderiam, com resultados significativos para a qualidade da educação escolarizada. No Brasil, essa cultura ainda não se instalou, mas o seu reconhecimento qualificaria o magistério, em todos os níveis.

Em relação à formação de professores, qual a situação do Brasil em comparação a outros países?

– Há diferenças importantes. Em alguns países, a formação está localizada em instituições específicas para tal, como os modelos francês, suíço e de outros países similares. Na Argentina, há os institutos de formação do professorado, que têm essa missão. A maior parte da formação docente não está na universidade. A vantagem dessa modalidade é ter a formação de professores como coração institucional, um projeto que articula todos os esforços para tal missão. Em países como o Brasil, lutou-se para que a formação dos professores fosse realizada em nível superior, sob o argumento de que a ambiência acadêmica, incluindo o valor da pesquisa, seria importante para os futuros docentes. Entretanto, mesmo que esse argumento tenha sustentação, encontramos uma realidade em que grande parte dos cursos de licenciaturas se realiza em faculdades isoladas, que por proteção legal não precisam incluir a pesquisa na sua funcionalidade. E mesmo quando esses cursos ocorrem na universidade, parece que assumem uma condição periférica na estrutura acadêmica de poder.

No bloco europeu, com o advento de Bolonha (Tratado de Bolonha, 1999), a formação assumiu dois ciclos. A profissionalização se dá no segundo, já com o título de mestrado. Se comparado esse modelo com a realidade brasileira, ele aparece em desvantagem, pois pode haver um aligeiramento no processo formativo. Aqui, o mestrado ainda representa uma etapa exigente no que se refere à pesquisa e à apropriação teórica. Mas é certo que poucos docentes da educação básica têm chances de cursá-lo e, quando o fazem, geralmente, deixam esse nível de ensino, dadas as condições salariais. Do ponto de vista teórico, creio que precisamos reforçar o conhecimento do professor, inclusive a parte técnica, ainda que se reconheça que para a docência existem outros tantos saberes importantes. Nesse sentido, o exemplo de outros países poderia ser uma inspiração.

Quando procuramos um médico ou um jardineiro, os saberes técnicos orientam nossa escolha, ainda que saibamos que sua expertise não se reduz a eles. Portanto, não há de se temer assumir que o professor, na sua profissionalização, precisa de saberes técnicos e compreendê-los num contexto ético e político.

Como surgiu o interesse pela carreira acadêmica, tanto pelo ensino quanto pela pesquisa? Quando percebeu que tinha a vocação?

– Faço parte de uma geração em que o magistério era uma opção natural para as mulheres da classe média. Minha mãe era professora; tias e primas, também. A profissão era valorizada e havia a ideia de que se podia compatibilizá-la com as responsabilidades familiares. Portanto, não questionei muito essa escolha. Mas confesso que ela não me desagradava, pois sempre me encontrei nas ciências humanas e percebia que gostava de trabalhar com gente. Em 2015, farei 50 anos de magistério. Boa parte deles cumpri na educação superior e na educação profissional, mas comecei na escola básica e muito aprendi em cada uma dessas etapas da minha trajetória. Mesmo considerando que as oportunidades que tive não podem ser generalizadas para outras pessoas, ouso dizer que fui muito feliz na escolha e não a trocaria por outra profissão. Entre as grandes satisfações que reconheço na docência está um sentimento de crer ter sido importante para algumas pessoas, que tiveram sentido e significado muitas das ações que protagonizei ou de que participei. Ter sido útil parece dar sentido a nossa vida. E o magistério faz parte das profissões que, trabalhando com gente, encontram nas relações humanas construídas seu maior patrimônio. Entretanto, essa condição dificilmente se mede nos testes padronizados, nem pela métrica do currículo Lattes. Trata-se de um sentimento subjetivo, mais fácil de ser entendido por quem é professor.

O que diria aos jovens professores?

– Permaneçam na profissão se encontrarem sentido na mesma. Senão, devem procurar alternativas. Os estudantes merecem professores que encontram sentido no seu fazer. Estudem muito, articulem ações coletivas, construam comunidades de aprendizagem que favoreçam o empoderamento profissional. Usem a autonomia com responsabilidade. Sintam-se parte de uma classe profissional na qual o fracasso de um atinge a todos. Portanto, é fundamental a solidariedade e o compromisso comum. A luta por melhores condições de trabalho é crucial. Mas ela será conquistada se contar com a capacidade profissional e com a autoestima dos professores.

Ainda que nem sempre apareça, há muita coisa boa feita nas escolas do Brasil. Isso não significa deixar de reconhecer os grandes problemas ainda a ser enfrentados. Mas nenhuma medida terá sucesso sem o envolvimento dos professores. Por isso, sintam orgulho da profissão. Ela é da maior importância. E deve ser da melhor qualidade. (Republicada, com acréscimos, em 29.10.2014)

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