Professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Leôncio José Gomes Soares desenvolve pesquisas na área de educação, especialmente a educação de jovens e adultos (EJA). Ele defende a necessidade de uma formação específica do educador para trabalhar na área, formação esta que atenda às especificidades dos jovens, adultos e idosos. “Cada ciclo da vida humana requer atenções e olhares voltados para o entendimento do que é próprio daquele ciclo”, diz o professor. “Acrescenta-se ao ciclo a realidade de serem pertencentes aos coletivos populares, o que significa tratar o jovem pobre, com suas circunstâncias, suas necessidades, seus interesses, suas motivações e expectativas em relação ao processo de formação.”
Segundo Soares, é necessário pensar em um currículo mais apropriado, bem como na elaboração e produção de recursos didáticos. “Não faz o menor sentido trabalhar a alfabetização de adultos com imagens e textos infantis, bem como utilizar atividades didáticas pensadas para adolescentes com um público idoso”, avalia.
Soares tem graduação em letras, mestrado e doutorado em educação e pós-doutoramento na Universidade Federal Fluminense (UFF) e na Northern Illinois University, dos Estados Unidos. (Fátima Schenini)
Jornal do Professor — Qual é a missão da educação de jovens e adultos no Brasil? Ela guarda alguma relação com o antigo curso supletivo?
Leôncio Soares — Não diria missão, e sim função. A educação de jovens e adultos tem origem na educação de adultos e diz respeito a processos de formação dos sujeitos. No Brasil, a partir das décadas de 1980 e 1990, a educação de adultos acolheu o campo da juventude, dada a ausência de políticas voltadas para esse ciclo da vida humana. A relação com o antigo curso supletivo é porque os sujeitos, sejam eles jovens, adultos ou idosos, são os mesmos. A maneira de concebê-los e, consequentemente, de trabalhar com eles é que marca a diferença. Enquanto no supletivo prevalece a ideia de repor conteúdos perdidos, na educação de jovens e adultos se procura envolver os sujeitos na construção de um processo de formação a partir de suas realidades.
— Como esse tipo de educação evoluiu em nosso país? Quais as lacunas históricas e fatores recentes que fazem o Brasil ainda precisar de uma política de jovens e adultos?
— Historicamente, no Brasil, os jovens e adultos populares sempre tiveram negados seus direitos à educação. A elite brasileira, quando se lembra dessa parcela da população, é para colocá-la na linha. Foi assim no início do século 20, quando campanhas de educação de adultos se espalharam no país visando à alfabetização de futuros eleitores. Como causa dos desmandos, da miséria e das epidemias, uma discriminação e um preconceito sobre os analfabetos motivaram iniciativas visando a “erradicar esse mal social”. Não se atacavam as causas do analfabetismo, mas o sujeito na condição de analfabeto. Desde então, esses sujeitos são vistos pelo prisma da falta, da ignorância, da incapacidade e do não saber. Movimentos populares e de trabalhadores procuraram imprimir uma educação emancipadora em suas atividades educativas. Na década de 40, Paschoal Lemme [1904-1997] propôs uma educação a partir das necessidades e interesses dos trabalhadores. Na década de 50, Paulo Freire [1921-1997] introduziu a educação com foco no sujeito e na transformação de sua realidade. Passados 500 anos, temos um contingente de 65 milhões de brasileiros, acima de 15 anos, que ainda não conseguiu concluir nem sequer o ensino fundamental. Esse dado da realidade já é suficiente para demandar do Estado o dever para com a garantia do direito à educação aos jovens, adultos e idosos.
— Qual é a situação da EJA no mundo, atualmente? Em países desenvolvidos, esse tipo de educação é oferecido da mesma forma que no Brasil? Quais as diferenças e similaridades?
— Obviamente, essa situação não é a mesma no resto do mundo. Países ditos desenvolvidos, localizados predominantemente no hemisfério norte, não convivem com a realidade do analfabetismo. Portanto, a educação de adultos, em muitos deles, é concebida como uma atualização profissional, com novas aprendizagens computacionais ou mesmo de um novo idioma, como fruição artística, histórica e cultural. Países como Canadá, Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, França, Itália e convivem com um movimento migratório por serem focos econômicos. Nesses países, a educação de adultos assume também a aprendizagem de um segundo idioma para as populações que os procuram.
— Há um perfil básico dos alunos de EJA no Brasil?
— Como somos um país de dimensões continentais, a característica da EJA é a heterogeneidade do público que a demanda, marcada por diversidade etária, racial, de gênero, de religião e população LGBT. Não se trata de qualquer jovem, qualquer adulto ou qualquer idoso. São jovens e adultos pertencentes a camadas populares que não tiveram acesso à escola devido a inúmeros fatores, como negação do direito a estudar, necessidade de ter de trabalhar precocemente, de auxiliar a família no cuidados com os irmãos ou algum parente adoentado. Nas salas de EJA, esse público se identifica nas histórias comuns de exploração, opressão e exclusão social.
— Como está a formação dos professores que trabalham com a EJA? Eles precisam de formação específica?
— Por muitos anos, a EJA não teve visibilidade, pois era tratada como um problema de pequena proporção. Achavam que eram somente alguns que ainda não sabiam ler nem escrever. De um lado, com a atualização dos dados por meio de estatísticas e indicadores sociais, e de outro, pela forte pressão que os setores populares passaram a fazer ao poder público pelo atendimento ao direito de todos à educação, a EJA passou a ser vista como um problema de grandes proporções. Assistimos a uma ampliação do público demandante da EJA entre o fim do século passado e o início deste. As universidades não acompanharam esse crescimento na mesma proporção. Nas faculdades que formam o professor para a educação básica, a cultura ainda está presa à preparação para atender o público infantil, as crianças e os adolescentes até o ensino médio. A imagem de um adulto ou mesmo do idoso dentro de uma escola de ensino fundamental é ainda desconhecida de muitos cursos de preparação de professores. Iniciativas ainda pontuais vêm se dando em cursos de pedagogia do país, com uma cobertura bem reduzida, se levarmos em conta o atendimento existente nas escolas. Em relação aos cursos de licenciatura que formam os docentes para atuar no segundo segmento do ensino fundamental e no ensino médio — professores de língua portuguesa, de matemática, de geografia, de ciências, de história e de educação física —, os profissionais, muitas vezes, vão trabalhar com a EJA sem uma preparação específica para atuar com esse público. Uma formação específica do educador para trabalhar na EJA é, sim, necessária.
— Quais os principais aspectos que os professores de EJA devem observar para a obtenção de melhores resultados com seus alunos?
— Não se trata propriamente de obtenção de melhores resultados, pois não estamos discutindo aqui sobre os distintos rumos que podem ser dados à EJA. Quando nos referimos a uma formação apropriada, estamos nos referindo às especificidades dos sujeitos jovens, adultos e idosos que compõem o público da EJA. Cada ciclo da vida humana requer atenções e olhares voltados para o entendimento do que é próprio daquele ciclo. Acrescenta-se ao ciclo a realidade de serem pertencentes aos coletivos populares, o que significa tratar o jovem pobre com suas circunstâncias, suas necessidades, seus interesses, suas motivações e expectativas em relação ao processo de formação.
— Os alunos de EJA necessitam de recursos e materiais didáticos específicos? Como está essa questão?
— Se entendermos que eles estão circunscritos a realidades distintas dos demais estudantes, logo é necessário pensar um currículo mais apropriado. Assim também se dá com a elaboração e a produção de recursos didáticos. Não faz o menor sentido trabalhar a alfabetização de adultos com imagens e textos infantis, bem como utilizar atividades didáticas pensadas para adolescentes com um público idoso.
— Qual sua opinião sobre as aulas a distância nos cursos de EJA?
— Em primeiro lugar, temos de reconhecer que se passaram quase 500 anos até que se conquistasse o direito de todos à educação. Isso produziu uma dívida social para com uma parcela significativa da população, e o atendimento a esse direito não pode se dar sem qualidade na oferta. É necessário garantir o acesso desse público demandante da EJA a escolas com instalações adequadas e espaços apropriados. A efetivação do direito não se esgota simplesmente com a garantia do acesso. Há que garantir também a permanência, e essa só se conquista com a qualidade de uma proposta de experiência escolar significativa. Muitos já sofreram a exclusão social, que os impossibilitou de estudar; outros foram excluídos pela segunda vez ao tentarem estudar e não serem atendidos em suas especificidades. Entre as formas de atendimento a esse público, a aula a distância é uma das estratégias possíveis. A educação a distância requer, no entanto, disponibilidade de tempo e de equipamentos e uma postura disciplinada da parte dos estudantes para gerir os momentos de estudos. Grande parte do público da EJA está sem concluir o ensino fundamental exatamente pelos motivos sociais e econômicos que o excluiu da escolarização. Logo, não são muitos os estudantes com perfil autodidata, próprios da educação a distância.
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