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Narrativa policial: um anjo violento ou afetuoso?

 

18/11/2010

Autor y Coautor(es)
Marilene de Mattos Salles
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JUIZ DE FORA - MG Universidade Federal de Juiz de Fora

Maria Cristina Weitzel Tavela

Estructura Curricular
Modalidad / Nivel de Enseñanza Disciplina Tema
Ensino Médio Língua Portuguesa Gêneros discursivos e textuais: narrativo, argumentativo, descritivo, injuntivo, dialogal
Datos de la Clase
O que o aluno poderá aprender com esta aula

O aluno irá reconhecer algumas características do romance policial, tais como ‘mistério’, ‘suspense’, ‘enigma’, relacionando-as ao conto “O anjo da guarda”, de Rubem Fonseca.

Duração das atividades
4 a 5 horas/aula
Conhecimentos prévios trabalhados pelo professor com o aluno

Aulas elaboradas para alunos do 3° ano do ensino médio. É recomendável que já tenham familiaridade com o gênero textual ‘conto’ e que já tenham vivenciado discussões relativas à variação linguística, especialmente em torno da linguagem vulgar na fala de personagens.        

Estratégias e recursos da aula

Professor: as aulas 1 e 2 serão realizadas no Laboratório de Informática.

Aula 1 e 2   

Conduza seus alunos ao Laboratório de Informática. Diga a eles que vocês farão a leitura do conto “O anjo da guarda”, de Rubem Fonseca. Projete a imagem do autor, disponível em   http://www.releituras.com/rfonseca_bio.asp  e promova um diálogo, fazendo perguntas sobre ele: se o conhecem; que tipo de história ele gosta de contar; se já leram algum texto dele, etc.

Nesse mesmo site, você poderá encontrar alguns dados biográficos importantes para enriquecer esse diálogo.  Atente para o fato de que o autor trabalhou na polícia e que muitas das suas histórias podem ter sido motivadas por essa experiência. Portanto, são histórias que tratam das mazelas humanas, da violência, da crueldade, sem pudores, estampando a hipocrisia da sociedade, revelando o descaso a que muitos são submetidos. Ao valorizar o submundo, o ‘lixo’ emerge (em todas as camadas sociais),  trazendo perplexidade e desconcerto aos leitores, sentimentos necessários à reflexão: afinal, em que mundo vivemos?  

Leia em http://www.cristovaotezza.com.br/textos/resenhas/p_970830.htm  a resenha de Cristóvão Tezza sobre as obras de Rubem Fonseca. Redobre sua atenção na leitura do último parágrafo, pois nele há dados importantes a serem destacados na aula, como o nome do livro onde o conto “O anjo da guarda” foi publicado (“Histórias de amor”) e algumas características estilísticas de Rubem Fonseca.

Professor: na sequência, projete a imagem abaixo:

http://www.google.com.br/images?hl=pt-BR&gbv=2&tbs=isch:1&ei=grusTJWcEIP98Abt4aSbBw&q=%22anjo+da+guarda%22&start=180&sa=N 

Solicite a participação de todos para a leitura dessa imagem. Você poderá fazer algumas perguntas, como:

a) O que veem? Essa imagem poderia ser de um anjo?

b) O que nos leva a pensar que se trata de um anjo? (Resp.: possivelmente os alunos responderão que são as asas; talvez se refiram aos contornos semelhantes ao homem; ainda poderão se referir à luminosidade).

c) Saberiam dizer se anjos são sempre seres 'do bem'?     

(Algumas considerações possíveis: a palavra ‘anjo’ vem do latim angelus e significa mensageiro. Segundo a tradição judaico-cristã, a mais divulgada no ocidente, o anjo é uma criatura celestial, superior aos homens, que serve como ajudante ou mensageiro de Deus. Mas é possível encontrar referências também a anjos maus. Na II carta de Pedro 2:4, lê-se “Porque Deus não perdoou aos anjos que pecaram, mas havendo-os lançado no inferno, os entregou às cadeias da escuridão, ficando reservados para o juízo”.  Segundo a Bíblia, antes da criação, Satanás era um anjo de Deus. Um Querubim. Morava no céu. Como ele era um anjo muito lindo e importante,  a soberba entrou em seu coração e ele quis ser maior que Deus, armando  uma rebelião para destroná-lo. Ele foi expulso do céu e carregou consigo um terço dos anjos, os que participaram com ele dessa rebelião. São então os anjos maus, os que chamamos hoje de demônios, capetas, os anjos de Satanás, do Diabo,de Lúcifer, do Senhor das trevas, etc. Quanto ao anjo da guarda, segundo alguns, trata-se daquele a quem  é confiada individualmente cada pessoa ao nascer, protegendo-a do mal, inspirando-a a fazer boas ações. Há, entretanto, quem acredite que não existe um anjo especial para cada um de nós. Essa ideia poderia ter surgido a partir de uma interpretação de um versículo da Bíblia: no salmo 91:11, que diz que Deus dá ordens aos seus anjos para que NOS GUARDEM EM TODOS os nossos caminhos.)

d) Que ideia essa imagem suscita? De um anjo bom ou mau? Ou seria ela ambígua, já que não há feições para podermos identificar?

e) O título do conto que vamos ler é “O anjo da guarda”. Considerando o que foi dito sobre Rubem Fonseca, que expectativa vocês têm sobre o tema desse conto? (Anote algumas opções sugeridas e o número de alunos que as apoiam, para verificação posterior.)

Professor: a seguir, passe à leitura do texto (este texto não está disponível on-line).

Como se trata de um conto extenso, é recomendável que essa leitura seja feita em voz alta, por você, professor. Faça também algumas interrupções estratégicas, visando a promover um instante de interação com os alunos, quando você poderá também perceber se estão compreendendo a história.   

1ª interrupção: final do parágrafo 47 

- No início do conto há duas personagens. Quem são? Onde estão? Qual é a relação existente entre eles? (Resp.: os personagens são um homem e uma mulher. Eles estão em um sítio. A relação entre eles é profissional. Ela está fugindo de perseguições e ele está ali, supostamente, para protegê-la.

- Com quem o homem se encontra no jardim? (Resp.: ele se encontra com Sônia.)

- O que fica evidente da conversa dele com Sônia? (Resp.: O que fica evidente é que aquele homem foi contratado por  Sônia e seu comparsa – Jorge – para dar fim à vida da mulher.)

- É possível notar alguma hesitação no matador quanto ao cumprimento da tarefa? (Sim. Ele questiona por que os dois querem se livrar da mulher. Além disso, pode-se notar que ele começa a sentir alguma afeição por ela, porque o faz lembrar-se de sua mãe. Repare os trechos em negrito.)   

2ª interrupção: final do parágrafo 81. 

- Por que o homem tirou as balas do revólver se o plano inicial era que a mulher se matasse? (Resp.: esse fato revela sinais de discordância ou dúvida quanto à realização do plano.)

- Há nesse trecho algum momento de delicadeza, de atenção do matador para com sua “vítima”? (Sim. Ele segura a mão dela e a tranquiliza.)     

3ª interrupção: final do parágrafo 113

- O matador telefona para Sônia. O que ele lhe diz? (Resp.: ele marca um encontro no sítio; diz que vai “fazer o serviço” e pede o restante do dinheiro.)

- Apesar dessa conversa, ainda se pode perceber sinais de paciência, de atenção do matador para com a senhora? (Resp.: sim. Alguns estão em negrito no texto.)

- Que impressão temos nesse trecho: será que o matador vai, enfim, executar o plano? (Resp.: eis o clímax mais importante dessa narrativa. O matador vive um conflito interno durante o tempo de convivência com a senhora, que poderia ser sua mãe. Encaminhe a leitura para o desfecho.)     

(Atenção: os parágrafos estão parcialmente numerados, para facilitar as referências. Nos locais onde haverá interrupção foi dado um espaço no texto.)    

O ANJO DA GUARDA

(1) A casa tinha vários quartos. Perguntei em qual deles eu ia dormir. Ela me levou para um quarto que ficava perto do dela.

Sentei na cama, testei o colchão.

Não dá, é muito mole, vai acabar de vez com as minhas costas.

Testei os colchões de todos os quartos e acabei encontrando um duro.

Esse aqui está bom, você tem uma camisa que sirva em mim? Esqueci de trazer uma roupa para dormir.

A mulher voltou logo em seguida com uma camisa de malha branca.

Essa é a maior que eu tenho. Usei uma vez, tem importância?

Agradeci e a mulher me deu boa-noite. Vesti a camisa, senti o cheiro do tecido, uma mistura de pele limpa e perfume.

Procurei uma posição para dormir. As costas doíam. Eu tinha uma porção de ossos quebrados e mal-emendados espalhados pelo corpo.

(10) A mulher bateu tão de leve na porta que quase não ouvi.             

Sim?             

Sou eu. Queria falar com você.

Um momento.

Vesti a calça e abri a porta.

Ela vestia um penhoar e uma mulher de penhoar sempre me lembra minha mãe. Aliás a única coisa que lembro da minha mãe é o penhoar.

Você está muito longe, não me sinto protegida, não consigo dormir, você não pode ir para aquele quarto ao lado do meu? A gente leva o colchão duro dessa cama e troca pelo outro.

Levei o meu colchão duro para o quarto ao lado do dela.

Sentei na cama.

Acho que agora está bom. Dá para dormir, boa noite.

(20) Boa noite.

Não aguentei dez minutos deitado. A dor na coluna aumentou. Saí da cama, sentei-me numa poltrona que havia no quarto.

Outra batida na porta.

O que é?

Ouvi um barulho no jardim, ela sussurrou através da porta, acho que tem alguém no jardim.

Vesti a calça. Abri a porta. Ela continuava de penhoar.

Isso deve ser impressão sua. Você anda muito nervosa. Em que lugar do jardim?

No bosque das magnólias. Lá não tem luz e tive a impressão de que vi uma luz apagar e acender.

Você tem uma lanterna?

Tenho.

(30) A mulher me deu a lanterna.

Toma cuidado. Eu já lhe contei as coisas horríveis  que têm acontecido comigo, não contei?

Você devia ir para o seu apartamento na cidade.

Lá é pior. Eu já lhe contei. Tive que desligar o telefone por causa dos trotes no meio da noite, me ameaçando. E tem gente me seguindo pelas ruas. Aqui pelo menos as janelas estão todas gradeadas e as portas são de ferro. Leva o revólver.

É melhor o revólver ficar com você. Fecha a porta. E não fica olhando lá pra fora pela janela.

Era um sítio grande. Um gramado com canteiros de flores rodeava a casa. No meio do gramado, uma piscina. Nos fundos, a casa do caseiro, a horta. O resto do sítio era cheio de bosques com árvores de grande porte, que tornavam a noite ainda mais escura. Havia bancos de pedra espalhados pelo meio das árvores. Sentei em um deles, no bosque de magnólias. Esperei, a lanterna acesa sobre o banco.

Sônia surgiu silenciosamente de dentro do escuro, sentou-se ao meu lado no banco de pedra.

Você deixou o seu revólver num lugar onde ela visse?

Deixei na mão dela. Estou seguindo o plano de vocês.

Ouve esse barulho, disse Sônia ligando um gravador que tirou da bolsa. Parecia um gemido, de alguém morrendo. Não parece um fantasma?

(40) A sorte de vocês é que aqui não tem cachorro.

Tinha. Nós o envenenamos. O Jorge envenenou. Quando é que ela vai usar o revólver?

Ela está morrendo de medo, vamos esperar mais um pouco. Quem é esse Jorge?

Se você não sabe eu não vou dizer.

Por que vocês querem que a mulher morra?

Isso não é da sua conta.

Vou voltar para a casa. Desliga esses gemidos. Por hoje chega.

(47)Não se esqueça do nosso acordo, disse Sônia. Dentro de mais três dias isso tem de ser resolvido. Se ela continuar indecisa, você dá o tiro na cabeça dela.

Voltei para a casa. A mulher abriu a porta com o meu revólver na mão. Tremia, com os olhos esbugalhados.

Que barulho era aquele?

(50) Nada.

Como nada? Eu ouvi. Você pensa que estou maluca?

Não.

Eu sei, eu sei que você pensa que estou maluca.

A mulher apontou o revólver para mim.

Diga a verdade. Você acha que eu sou maluca. Os caseiros achavam que eu era maluca e foram embora de noite, sem me dizer nada. Eu acabei de ouvir um gemido forte, o barulho de uma alma penada, como a minha, e você me diz que não era nada? E este revólver que não tem balas? É assim que você ia me defender? Com um revólver sem balas?

Como você sabe que não tem balas?

Dei seis tiros na minha cabeça e não aconteceu nada.

Esqueci de colocar as balas. Não sei como isso foi acontecer, sou muito cuidadoso.

Você tirou as balas porque pensou que eu era maluca e ia dar um tiro na cabeça.

(60) Estou aqui para proteger você. Vai dormir. Amanhã de manhã a gente conversa.

Não fala assim comigo. Estou muito nervosa. Dorme no meu quarto comigo.

Está bem.

A mulher deitou-se sem tirar o penhoar, cobriu-se com um lençol. Sentei na poltrona do quarto. Todos os quartos tinham poltronas e banheiro privativo.

Da cama ela olhava para mim, suspirava como quem quer chorar.

Vem aqui, segurar na minha mão.

Segurei na mão dela.

Você tem a mão grande. Você era trabalhador braçal?

Não.

Você foi sempre acompanhante de pessoas doentes?

(70) Quando eu era jovem passei uns dois anos empurrando a cadeira de rodas de um velho. Foi a melhor época da minha vida, eu gostava de ler, ele tinha milhares de livros e eu passava o dia lendo.

Nunca vi você lendo aqui.

Ainda não tive tempo e os seus livros não me atraem.

Sinto muito. E depois de trabalhar na casa cheia de livros que te atraíam?

Depois tomei conta de outro velho.

Ele era doente mental?

Não. Uma doença de velhice ( O sujeito se matou, com a minha ajuda mas isso eu não diria a ela .)

Vê se consegue dormir um pouco.

Eu sou maluca?

Não. Está apenas muito nervosa.

(80) A mulher dormiu. Larguei a mão dela. Fui para a poltrona e fiquei a noite inteira acordado, pensando, sentindo o cheiro da camisa dela no meu corpo e olhando para a mulher enquanto ela dormia. O homem primitivo devorava como uma hiena os restos dos cadáveres dos bichos que encontrava e que haviam sido caçados por outros animais. Só se tornou um caçador depois que astutamente inventou suas armas perfurantes. Coloquei as balas no tambor do revólver.

(81) A mulher na cama parecia um cachorro morto em quem era fácil dar pontapés. Não faço perguntas, quando me pedem um serviço. Mas neste caso gostaria de saber quem queria que ela desse um tiro na cabeça. Um marido escroto aterrorizando a mulher histérica para fazer ela se matar e o puto ficar com a grana? Já passei por uma situação mais ou menos assim, numa semana de carnaval.

O dia raiou, os passarinhos começaram a piar e a mulher acordou. Ela sorriu para mim.

Hoje estou me sentindo melhor. Acho que esse pesadelo vai acabar. Vou trabalhar no jardim, você fica perto de mim?

Saí do quarto dela. No meu banheiro, lavei o rosto e escovei os dentes. Fui para o jardim.

A mulher tinha um chapéu na cabeça para protegê-la do sol. Pediu para eu acompanhá-la até um quarto de ferramentas que ficava ao lado da garagem. Havia picaretas, pás, um cortador elétrico de grama, uma bomba com implementos para limpar a piscina. Pegou uma tesoura dessas que se usam nos jardins.

Meu jardim é bonito, não é? Eu mesma plantei essas flores, não são bonitas?

Não dou muita importância a flores, mas ouvi com paciência ela dizer os nomes das que cresciam nos canteiros.

Preciso dar um telefonema.

O telefone está desligado.

(90) Vou lá no centro da vila.

Por favor, não me deixe sozinha.

Então você vem comigo. Depois você trabalha no jardim.

Pegamos o carro dela.

Você gosta de música?

Se você quiser ouvir eu não me incomodo.

Ela colocou um concerto de violino no aparelho do carro.

Não dá uma sensação de paz?

Música de violino me deixa inquieto, mas aguentei sem dizer nada. Chegamos na pracinha da vila. Parei na porta do mercadinho, cheia de sacos de comida de gato e de cachorro.

Ela saltou do carro comigo. Vou fazer compras, cansei de comer congelados.

(100) O homem do mercadinho cumprimentou-a amigavelmente, a mulher tinha aquele sítio havia muitos anos. O homem perguntou se eu era o novo caseiro e a mulher respondeu que eu era um amigo.

Próximo havia uma padaria. Liguei de lá para a Sônia.

Vou fazer o serviço. Mas quero antes ter uma conversa com você e o Jorge. Quero receber o que falta. Hoje à noite, naquele lugar onde nos encontramos ontem.

O Jorge não vai.

O problema é dele. Se ele não vier conversar comigo, nada feito. Nove horas.

Desliguei o telefone. Voltei ao mercadinho. Peguei a saca cheia de compras e fomos para o carro.

A mulher trabalhou no jardim, depois fez comida para nós. Mas apenas sentou comigo na mesa, não comeu nada. Logo voltou a trabalhar no jardim, enquanto ouvia música, eu o tempo inteiro ao lado dela, sofrendo com aquela música, desejando que aquilo tudo acabasse de uma vez.

Quinze minutos antes das nove eu disse para a mulher que ia dar uma olhada no terreno do sítio, que talvez demorasse um pouco.

Não me deixa sozinha.

Peguei a lanterna.

(110) Não vou me afastar muito, não se preocupe. Tranca tudo e só abra a porta para mim. E não fica na janela.

Por favor...

Não se preocupe.

(113)Saí, levando o revólver. No quarto de ferramentas peguei duas pás e uma picareta e fui para o bosque de magnólias. Sentei no banco de pedra, a lanterna acesa. Coloquei as pás e a picareta ao lado do banco.

Sônia e Jorge demoraram a aparecer. O homem usava um chapéu que cobria metade do rosto dele.

Apaga essa lanterna. O que você queria comigo?

Eu o reconheci logo. Se você quer ficar vivo neste mundo de merda não pode esquecer nem a cara nem a voz de ninguém. Era o filho do velho Baglioni que eu ajudara a ir para o outro mundo. Fingi que não o reconhecera.

Uma pergunta, apenas. A mulher é sua esposa?

Essa velha? Ela é minha sócia, pirou e está fodendo os negócios. O que você queria comigo?

Receber o que falta.

(120) Antes de você fazer o serviço? Impossível. Trato é trato.

Vou matar a mulher hoje e dar o fora. Como vou receber o que falta?

Você sabe onde encontrar a Sônia. Ela te paga depois.

Acendi a lanterna. Mostrei as pás e a picareta.

Quero que vocês me ajudem a abrir uma cova, se eu for fazer isso sozinho vai levar um tempo enorme. O corpo tem que sumir. Fiz compras com ela no mercadinho da vila e viram a minha cara.

Só faltava essa, disse Jorge.

Sem cova não tem cadáver.

Está bem, está bem, disse Jorge pegando uma das pás. Eu peguei a outra e a picareta.

Aqui não. Temos que sair do sítio, vamos para a floresta.

Não posso andar muito, estou de sapatos altos, disse Sônia.

(130) O problema é seu.

Andamos pela floresta, Sônia reclamando que os seus sapatos estavam se estragando.

Aqui está bom, eu disse.

Sônia se recusou a cavar. Eu e Jorge trabalhamos em silêncio, como os coveiros fazem. Não é fácil abrir uma cova grande, ainda mais num solo duro como aquele. Empapamos de suor as nossas camisas. Jorge suava mais do que eu, mas não tirou o chapéu que escondia o seu rosto.

Jorge largou a pá. Chega, já é suficiente, ele disse.

Continuei com a picareta na mão.

Ainda falta uma coisa, eu disse.

Golpeei com força a cabeça de Jorge, usando a ponta da picareta. Ele caiu. Sônia começou a correr, mas deu apenas alguns passos e um grito de medo, não foi bem um grito, foi uma espécie de uivo.

Verifiquei se estavam mesmo mortos, não queria enterrá-los vivos. Trabalhei aprofundando a escavação mais um pouco. Joguei os dois dentro do buraco e cobri com terra. Soquei a terra com a pá e cobri a cova com pedras e galhos de árvore. Naquela floresta só havia passarinhos, sapos, cobras, insetos e outros bichos inocentes. Não iam abrir aquela cova, mas eu não queria correr riscos.

Lavei as pás e a picareta no tanque e levei de volta para o quarto de ferramentas. Bati na porta de ferro da casa.

(140) Sou eu, pode abrir a porta.

A mulher abriu a porta, assustada como sempre. Você viu alguma coisa?

Não. Nem ouvi nenhum som estranho. Você ouviu?

Não, ela respondeu. Quer tomar um chá? Vou fazer um chá para a gente.

Fiquei no sítio mais uma semana com a mulher, apesar da música. Não há nada mais irritante do que essa música de violino. Todo dia eu ia ver a cova onde aqueles dois estavam apodrecendo, para ver se havia algum cheiro ruim no ar. Nada. No mercadinho da vila indicaram um casal de velhos que foram contratados como caseiros pela mulher. O velho era um homem rijo que trabalhava o dia inteiro no jardim, ele e a minha mãe. Estou brincando, mas gostaria que ela fosse minha mãe. Eu gostava dela. Se tivesse uma mãe assim eu seria um homem diferente, meu destino ia ser outro e eu tomaria conta dela, ia ter alguém para amar.

Ela estava no jardim com o caseiro, mexendo na terra. Tenho que ir embora, eu disse.

Não sei como pagar o que você fez por mim. Fiquei boa. Não tenho mais medo.

Boa você não está. Mas ninguém mais vai ligar o telefone para você no meio da noite, nem ninguém mais vai te seguir pelas ruas apavorando você.

Como posso te pagar? Você deve precisar de dinheiro.

Já recebi o meu pagamento. Mas você pode me levar de carro até a estação de ônibus na cidade.

(150) A mulher me levou de carro até a estação.

Quando você precisar de alguma coisa, me procura. Me dá o seu telefone, disse ela.

Não tenho telefone.

A Sônia deve saber como encontrar você se eu precisar, não? Ela foi muito boa, indicando você para meu anjo da guarda.

Não respondi. A mulher esperou comigo o ônibus chegar, nós dois dentro do carro ouvindo a música que ela gostava e o violino não me pareceu tão irritante.

(155) Peguei o ônibus. Ela me acenou enquanto o ônibus se afastava.  

Professor: terminada a leitura, elabore as seguintes perguntas orais, visando a relembrar aspectos estruturais da narrativa, como tema, espaço, foco narrativo, personagens, etc.    

a) Afinal, quem é o ‘anjo da guarda’ nessa história? (Verifique se houve acertos quanto às expectativas dos alunos em relação ao título do conto.) (Resp.: o ‘anjo da guarda’ é, na verdade, o assassino profissional)    

b) Por que, então, Rubem Fonseca deu esse título ao conto? (Resp.: porque o matador não faz o serviço para o qual foi contratado, comportando-se, nesse momento da sua vida, como um protetor, um anjo da guarda.)   

c) A história começa pela introdução, pelo desenvolvimento ou pelo desfecho? (Resp.: a narrativa começa pelo desenvolvimento; não há uma introdução demarcada. Os fatos e personagens vão sendo apresentados ao longo do desenvolvimento. O leitor recupera o que seria uma  introdução, especialmente, no 35º parágrafo (um homem e uma mulher estão em um sítio) e 47º parágrafo (o homem está lá, não para proteger, mas para matar a mulher: trata-se da contratação de um assassinato.)   

d) Onde se passa a história? (Resp.: a história se passa numa casa de campo.)   

e) O autor dá mais ênfase ao espaço interno da casa (ambiente) ou ao espaço externo? Por quê?  (Resp.: ele dá mais ênfase ao espaço externo, que tem uma função pragmática: serve de instrumento ao desenvolvimento da ação. Ora gera suspense, transmitindo sensações de escuridão, opressão, fatalidade; ora gera sensações agradáveis, de transparência e bem-estar, como o cultivo de flores durante o dia, no jardim).    

f) Qual é o foco narrativo? (Resp.: a história é contada em 1ª pessoa; narrador protagonista. O tom é confessional ou intimista: o narrador parece viver um conflito psicológico.)   

g) Convide um aluno para contar a história com poucas palavras. Peça a participação dos colegas para completar esse resumo oral, caso algum fato muito importante tenha sido esquecido.   

Professor: prosseguindo, distribua cópias da atividade abaixo para serem feitas em dupla, por escrito. Recolha ao final da aula para correção. Auxilie os alunos, tirando dúvidas, quando necessário.  

Atividade   

As questões que você vai responder têm a ver com as características do gênero conto. Leia abaixo algumas informações.

Conto:

- narrativa curta que apresenta um único conflito, tomado já próximo do seu desfecho. Apresenta apenas um episódio (monotemático), espaço e tempo concentrados, limitação de personagens, predomínio da visualidade).

- a brevidade do conto tem uma causa intrínseca, um motivo interno que justifica a sua construção : o contista condensa a matéria, concentra efeitos, com o intuito de provocar um impacto no leitor.

Assim, responda:   

1) Quantos conflitos existem nesse conto? Qual é ele? (Resp.: há um único conflito, o de um matador que tem a missão de matar uma mulher, mas hesita quanto ao cumprimento da tarefa.)   

2) Quantos temas?   (Resp.: apenas um; o eixo da narrativa gira em torno de um sentimento afetivo que vai se acumulando gradativamente a partir da convivência entre o matador e a vítima.)   

3) Quantas são as personagens? (Resp.: Quatro principais e 2 secundárias: o homem da vila e o novo caseiro.)   

4) Há predomínio de visualidade? Como ela se dá? ( Resp.: Sim. Ela se dá pelas descrições.)   

5) Cite uma e o efeito provocado.   

6) A história encaminha-se logo para um desfecho? (Resp.: Sim.)   

7) Qual é o desfecho do conto? (Resp.: o matador não faz o serviço para o qual foi contratado. Ele mata os contratantes e confessa um desejo: gostaria que a senhora fosse sua mãe, gostava dela, poderia ser diferente se tivesse uma mãe assim.)   

8) Que impacto esse conto lhe causou?   

9) Os clímax da narrativa são os momentos em que a tensão atinge o seu mais elevado grau. Um conto caracteriza-se por possuir diversos clímax bem próximos um do outro. Identifique um desses momentos e diga qual foi a sensação que você experimentou.

Resp.: veja as possibilidades abaixo.

Clímax 1 - 24º parágrafo

Clímax 2 - 35º parágrafo (Atentar para as pistas que ajudam o leitor a recompor o que seria uma introdução neste e nos parágrafos 36, 37 e 38).  

Clímax 3 - 81º parágrafo: “Não faço perguntas, quando me pedem um serviço. Mas neste caso gostaria de saber quem queria que ela desse um tiro na cabeça.”  (Por que quer saber?)

Clímax 4 - 102º parágrafo: “Vou fazer o serviço.” Ao final da leitura, o leitor poderá perceber que, nesse momento, o assassino já está decidido a matar os comparsas. Atentar para as imagens de figura materna e o alto envolvimento dele com a mulher. Atentar para a execução do plano que só ele tinha em mente; não divide com o leitor. Este só descobre o plano quando ele efetivamente mata Sonia e Jorge. O clima de suspense aumenta.

Clímax 5: o assassinato dos comparsas, já perto do desfecho. Encaminhamento para o desfecho : Atentar para outra imagem maternal: “Vou fazer um chá para a gente”(143º parágrafo)

 ( Professor: atentar para o fato de que a imagem da mulher é construída em torno de elementos que evocam candura e ternura: roupa limpa e cheirosa; flores e jardim; música ao som de violino; suaves toques de mão; alimento. Essa atmosfera cria no matador um sentimento amoroso: ele gosta daquela mulher a ponto de desejar que ela fosse a sua mãe (parágrafo 144). Se assim fosse, ele talvez seria um homem diferente.)  

Aulas 3 e 4   

Professor: distribua aos alunos cópia do material abaixo. Promova a leitura e o entendimento das questões teóricas colocadas.  

Tipologia do romance policial

Romance de enigma - apresenta duas histórias: a história do crime e a do inquérito, sendo que a primeira termina antes de começar a segunda.

História do crime: conta-se “o que se passou efetivamente”, o teor de cada informação é determinado pela pessoa que a transmite (aquele que viu); o autor não pode por definição ser onisciente.

Na história do inquérito, explica-se como o narrador tomou conhecimento do fato. Termina com a constatação da verdade e uma revelação surpreendente, desfazendo-se todo o mistério. Neste tipo de romance é postulada a imunidade do detetive. Romance negro: suprime a primeira história e dá vida à segunda, ou seja, ao inquérito. Não se conta um crime anterior ao momento da narrativa. A narrativa coincide com a ação. Nenhum romance negro é apresentado sob a forma de memórias. Nesse tipo de romance, o narrador não é intocável, não se sabe se ele chegará vivo ao fim da história. Ao contrário do romance de enigma, no romance negro não há mistério (no sentido como ele está no romance de enigma). Porém  há outras  formas de se  provocar interesse em quem lê:  instigando a sua curiosidade (do efeito – um cadáver e certos indícios – à causa -  encontrar o criminoso). Ou pelo suspense (da causa – dados iniciais, como a preparação de um golpe – aos efeitos, à espera do que vai acontecer.

Romance negro moderno constitui-se em torno do meio representado, em torno de personagens e costumes particulares; suas características constitutivas são seus temas. Assim o descrevia Marcel Duhamel, seu promotor na França: aí encontramos “a violência – sob todas as formas, e mais particularmente, as abominadas- o espancamento e o massacre”. “A imoralidade está ali à vontade, tanto quanto os bons sentimentos.” Está também presente o amor- de preferência bestial – a paixão desenfreada, o ódio sem piedade...” Com efeito, é em torno dessas constantes que se constitui o romance negro: a violência, o crime geralmente sórdido, a amoralidade das personagens. Obrigatoriamente, a segunda história, aquela que se desenrola no presente ocupa um lugar central; mas a supressão da primeira não é um traço obrigatório.  O romance negro não reserva suas surpresas para as últimas linhas do capítulo, como o romance de enigma.

- No romance negro as descrições são feitas sem ênfase, friamente, mesmo se descrevem fatos aterradores. Pode-se dizer com cinismo “Joe sangrava como um porco. Incrível que um velho possa sangrar a esse ponto). As comparações conotam certa rudeza.

Romance de suspense

- Conserva, do romance de enigma, o mistério e as duas histórias, porém não reduz a segunda a uma simples constatação da verdade. E do romance negro, ele conserva a importância dada à segunda história: o leitor está interessado não só no que aconteceu, mas também no que acontecerá mais tarde. Os dois tipos de interesse se acham aqui reunidos: existe a curiosidade de saber como se explicam os acontecimentos já passados; e há também o suspense: o que vai acontecer às personagens principais? Nesse tipo de romance, as personagens arriscam constantemente suas vidas, como no romance negro. O mistério tem uma função diferente daquela que tinha no romance de enigma: é antes um ponto de partida e o interesse principal vem da segunda história, a que se desenrola no presente.                                     

                                  (TODOROV, T. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1969)    

Proponha em seguida, a elaboração, por escrito, da atividade abaixo.   

1) Considerando o conto “O anjo da guarda” e as informações que você aprendeu sobre o romance policial, avalie as afirmativas abaixo, marcando V ou F.   

a) (   ) Tal como se observa no romance negro, em “O anjo da guarda” verificamos personagens desprovidas de moral; cenas de violência e crime sórdido.   

b) (    ) Pode-se considerar que “O anjo da guarda” dialoga com a idéia do romance de enigma, pois é uma narrativa que conta duas histórias, a do crime e a do inquérito, além de reservar o desvendamento de todo o  mistério apenas no final da obra, através de uma revelação surpreendente.    

c) (   ) No conto de Rubem Fonseca, o mistério é tratado de forma diferenciada, pois, ao longo da narrativa, o autor busca o interesse do leitor, instigando a sua curiosidade e provocando o suspense.   

d) (   ) Pode-se dizer que nesse conto e na ficção de Rubem Fonseca há a mistura de violência e humanidade no íntimo de seus personagens, o que se ajusta às descrições do  romance  negro moderno que apresenta  violência - sob todas as formas, e mais particularmente, as abominadas - o espancamento e o massacre. A imoralidade está ali à vontade, tanto quanto os bons sentimentos. Está também presente o amor - de preferência bestial - a paixão desenfreada, o ódio sem piedade...”  

Recursos Complementares

No vídeo abaixo, Jô Soares fala sobre a importância do ato de escrever e do incentivo dado por Rubem Fonseca em sua carreira como romancista.

http://www.youtube.com/watch?v=DJNDIs1HUKs   

Avaliação

A avaliação constará de duas etapas, uma escrita e outra oral.   

Etapa escrita   

Leia, abaixo, algumas pistas que sinalizam relações de afeto em “O anjo da Guarda”.   

“Vesti a camisa; senti o cheiro do tecido, uma mistura de pele limpa e perfume.” (8º parágrafo)

“Ela vestia um penhoar e uma mulher de penhoar sempre me lembra a minha mãe.” (15º par.)

“Por que vocês querem que a mulher morra?” (44º par.)

“...E esse revólver não tem balas?” (55º par.)

“Dorme no quarto comigo.” (61º par.)

“Segurei na mão dela.” (66º par.)

“ Vê se consegue dormir um pouco.” / “Eu sou maluca?”/ Não está apenas muito nervosa.” (77º, 78º, 79º par.)

“...fiquei a noite inteira acordado, pensando, sentindo o cheiro da camisa dela no meu corpo e olhando para a mulher enquanto ela dormia.” (80º par.)

“Não dou muita importância a flores, mas ouvi com paciência ela dizer os nomes das que cresciam nos canteiros.” (87º par.)

“ A mulher trabalhou no jardim, depois fez comida para nós. Mas apenas sentou comigo na mesa, não comeu nada. [...]  (106º par.)   

Responda:   

a)Considerando a vida anterior do narrador (e, talvez, a que ainda virá), ser um matador profissional traz algum conflito para ele?

b) E durante o episódio narrado, o narrador vive um conflito? Qual é ele?

c) Pudemos verificar que o narrador passou por várias experiências afetivas. Consulte o  quadro de anotações e crie um breve texto, relatando-as.   

Etapa oral   

Divida a turma em grupos de 4 alunos. Cada grupo discutirá as questões abaixo durante um tempo determinado. Em seguida, serão apresentadas as conclusões.   

1) As experiências afetivas vividas pelo matador foram decisivas para a preservação da vida da mulher?

2) De acordo com a sua opinião, em que medida a falta de afetividade contribui para o aumento da violência? Exemplifique a sua opinião com pequenos relatos de experiências.          

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