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JORNAL

Educação Infantil

Sexta-feira, 6 de Agosto de 2010

Edição 42

EDITORIAL - Educação Infantil

Atendendo a escolha de 50% dos leitores que votaram em enquete colocada em nossa página, o tema da 42ª edição do Jornal do Professor é Educação Infantil.

Aqui vocês vão conhecer duas experiências escolares: uma desenvolvida na área rural de Castro, no Paraná, e outra de Florianópolis, em Santa Catarina. Também vão saber como ocorre a formação de professores em exercício nas creches e pré-escolas das redes públicas e da rede privada sem fins lucrativos.

Nossa entrevistada é a professora Flávia Motta, do Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Ajude-nos a escolher o tema das próximas edições, votando na enquete colocada em nossa página. E aproveite para colaborar enviando sugestões, críticas, textos e músicas!

Seja bem-vindo!

Creche de Florianópolis investe na diversidade cultural

Crianças pintando.

Ampliar o conhecimento sobre diferentes culturas bem como sobre a identidade e ascendência das crianças são alguns dos objetivos do projeto Diversidade Cultural, que vem sendo desenvolvido na Creche Bem-te-vi, em Florianópolis, com crianças que têm entre dois e três anos de idade. Um dos conteúdos desenvolvidos é o boi-de-mamão, manifestação folclórica bastante difundida em Santa Catarina.

“O processo de conhecer, descobrir, interagir, crescer e apropriar-se de novos repertórios se deu de forma prazerosa, rica e envolvente. As crianças concentraram-se no folguedo do boi-de-mamão, trazendo a encenação como principal elemento de nosso trabalho cotidiano”, conta a professora Fabrícia Luiz Souza, 14 anos de magistério. Segundo ela, que é formada em pedagogia e tem especialização em educação infantil, as crianças realizaram apresentações com domínio e perfeição.

Fabrícia Souza explica que o projeto Diversidade Cultural foi criado para trabalhar com as diferenças, o preconceito, as diferentes culturas, costumes e valores do espaço social. Como o grupo possuía crianças que ainda usavam fraldas, a retirada das fraldas foi um dos pontos centrais do primeiro semestre. “Este processo de autonomia de cada um traz consigo o conhecimento de si, o controle sobre suas vontades e uma independência em relação ao adulto no que diz respeito aos esfíncteres”, ressalta.

Culinária: Interagindo com a família; Dia da Fruta; A vida fora...Saídas de Estudo; Tapete e Roda de Conversa são alguns dos subprojetos incluídos no projeto Diversidade Cultural. Entre as atividades desenvolvidas estão: contação de histórias; pintura das paredes da sala com personagens do Boi-de-mamão; exploração constante de tinta, cola colorida, massinha, giz de cera, lápis de cor, hidrocor; e realização de circuitos, onde as crianças são separadas em pequenos grupos para brincarem do que escolherem.

Outras atividades incluem preparo e exploração de alimentos de formas variadas, em dias definidos. Assim, quarta-feira é o Dia da Fruta e quinta, o Dia da Gelatina. Essas frutas e gelatinas serão de diversos tipos, enviadas pelas famílias, preparadas e degustadas junto com as crianças, de formas variadas.

De acordo com a coordenadora pedagógica da Creche Bem-te-vi, Telma Elita Wagner Ribas, a interação e a brincadeira são os eixos norteadores do projeto político-pedagógico da instituição, que atende 140 crianças com idades entre 4 meses a 5 anos e 11 meses. Eles estão presentes em todos os projetos realizados na creche, que incluem, entre outros, os seguintes: Era uma Vez, Encantos, Lobos e Bruxas; A Vida do Planeta e Seus Fenômenos Naturais - a Fúria e a Delicadeza da Natureza; Viagem ao Fundo do Mar; Eu e o Outro, Nossas Histórias.

Para Telma Elita, que é formada em pedagogia e está há 23 anos no magistério, o trabalho com projetos é muito importante, pois possibilita trabalhar aquilo que as crianças querem saber e têm a necessidade de conhecer. E esse conhecimento é possibilitado pelo uso de diferentes linguagens e recursos diversos, como pesquisa em revistas, livros, internet, entrevistas, entre outros, buscando também uma interação com as famílias.

(Fátima Schenini)

Projetos beneficiam crianças e familiares

Professora auxilia aluno a plantar muda de árvore.

Viva a Natureza é o nome de um dos projetos desenvolvidos, este ano, no Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) Pequeno Reino, em Castro, no Paraná. A localização da escola, situada ao lado de um bosque na zona rural do município, colabora para o sucesso do projeto, que tem a participação dos 90 alunos matriculados na escola.

“Iniciamos o projeto com brincadeiras e músicas para que pudéssemos, através de observações e registros, coletar informações sobre o que as crianças sabiam sobre o assunto, quais eram os interesses e necessidades de cada faixa etária”, explica a criadora do projeto, Jesélia Cordeiro Ortis, que atua na educação infantil há três anos.

Logo surgiu um conto oral que recebeu o nome de Jardim Encantando, que foi sendo enriquecido pela imaginação de todos. “Borboletas eram fadas, sapos eram príncipes, minhocas temerosas, serpentes e, é claro, tudo se passava em um pequeno reino com príncipes, princesas e rainhas, ou seja, as crianças e nós do CMEI”, diz a professora. A história foi relembrada em muitas aulas e recebeu diferentes interpretações das crianças, por meio de desenhos, cantigas ou faz de conta.

A música foi uma aliada importante no desenvolvimento do projeto, integrando os conteúdos e despertando o interesse das crianças. Sapo cururu, Eu sou uma borboletinha, e Sai, sai, peixinho da lagoa foram algumas das melodias utilizadas. Também foram usadas outras formas de expressão artística, como pinturas, dobraduras, colagens, e dramatizações. “A cada aula, os alunos descobriam na natureza formas diferenciadas de brincar, soltando o corpo e a imaginação", relata Jesélia.

Segundo ela, era possível perceber que, além do encantamento pela natureza as crianças tinham muita curiosidade em descobrir o mundo a sua volta e saber o porquê das coisas que os adultos muitas vezes nem percebem, devido a pressa do dia-a-dia. “Ver uma semente nascer e desabrochar para a vida, descobrir que aquele remédio que compramos na farmácia tem a mesma fórmula que a plantinha do quintal... Isso tudo as crianças nos demonstraram de forma prática, apenas dando-lhes liberdade de brincar com a natureza”, destaca.

A instituição, que atende crianças de dois a cinco anos matriculadas em período integral, desenvolveu também outros projetos, a fim de atender diferentes níveis da educação infantil. Assim, na creche II, que atende crianças de dois anos, foi aplicado o projeto Cada escolha um aprendizado, a fim de auxiliar no desenvolvimento da autonomia em situações de alimentação, higiene, e conforto bem como as habilidades motoras, cognitivas e emocionais.

Na creche III, que atende a faixa etária de três anos, foi realizado o projeto Muito prazer em me conhecer, com o objetivo de proporcionar aos estudantes atividades que possibilitassem o conhecimento de si mesmo e sentissem que possuem um nome, uma identidade e que, acima de tudo, são muito importantes. No pré I, com crianças de quatro anos, o projeto desenvolvido foi No embalo das letras se constroi o mundo, para estimular as crianças a explorar materiais impressos, com cuidado, sem rasgá-los. E no pré II, com crianças de cinco anos, o projeto Iabadabadoo! Na Era da Imaginação! utilizou personagens do desenho animado Os Flinstones.

De acordo com a diretora da instituição, Cláudia Salgado de Castro, o projeto aproveitou a curiosidade das crianças com o fato de os personagens de Os Flinstones escreverem em pedras e não em papeis. A intenção, segundo ela, foi levar as crianças a se apropriarem do hábito da escrita visando um melhor desempenho na sua aprendizagem.

Pedagoga com pós-graduação em gestão escolar, há seis anos na área de educação infantil, Cláudia conta que o Pequeno Reino também desenvolve um projeto para inserir a família no espaço escolar. Com o nome de Fortalecendo as Relações Familiares, ele promove diversas atividades extracurriculares, como mutirões, palestras e grupos de estudo, a fim de que os pais possam se inserir na comunidade escolar e enriquecer o universo educacional.

(Fátima Schenini)

Proinfantil qualifica formação de professores

Professores assistindo aula.

Ser professor é uma questão de vocação. Mas para trabalhar na área e promover um ensino de qualidade, é necessária uma boa formação. Foi pensando nisso que a professora Dilma Amorim decidiu ingressar no Programa de Formação Inicial para Professores em Exercício na Educação Infantil (Proinfantil). Ela sempre trabalhou com crianças e ensina na Creche Doutor Renato Veloso Lima, de Cajazeiras XI, em Salvador (BA). Entretanto, sentia falta de qualificação para o trabalho que contava apenas com sua paixão pela sala de aula. Com o Proinfantil, ela conseguirá a formação exigida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e continuar dando aulas.

A professora conta que começou a cursar o magistério há muitos anos, mas não conseguiu concluir. “Infelizmente não pude concluir, mas esse é o trabalho que eu amo”, afirma. Com a oportunidade de conseguir a formação necessária para continuar trabalhando, ela conta que já mudou até a postura em sala de aula. “Já me sinto mais segura para ensinar. Estou feliz por participar do Proinfantil. É a oportunidade que sempre quis ter”, conta ela, que considera fazer um trabalho com mais confiança e mais qualificado do que na época em que não tinha formação.

Dilma recebe, além do arcabouço teórico, toda orientação para trabalhar com crianças. E toda a formação pode ser feita paralelamente à sala de aula. Ela não precisa abandonar seus alunos para estudar e conseguir um diploma. O Proinfantil é um curso em nível médio, semipresencial, em parceria com estados, municípios e universidades direcionado aos professores de educação infantil em exercício nas creches e pré-escolas das redes públicas e da rede privada sem fins lucrativos. Tem 3.392 horas e duração de dois anos. Foi implementado pelo Ministério da Educação em 2005 e tem previsão de término para julho de 2011. Até lá serão formados 17.151 professores com habilitação no magistério em educação infantil.

De acordo com a professora da Agência Formadora de Uruaçu (GO), Rúbia Rosa Guerra, que participa do Proinfantil, ofertar essa oportunidade para pessoas que gostam de ensinar mas não têm a habilitação adequada é fundamental tanto para os profissionais quanto para os alunos. “Antes dos cursos do Proinfantil, encontrávamos na sala de aula do ensino infantil ‘professores’ que não tinham nem o ensino fundamental completo. Muitos ficaram sem estudar por anos. Alguns eram voluntários vindos de outras áreas da escola, como profissionais da limpeza”, relata. Rúbia diz que um professor do ensino infantil sem formação é mais um cuidador de crianças, pois não tem a qualificação necessária para trabalhar com a educação dos alunos. “Precisamos dar formação a esses profissionais, dar-lhes condições de exercer o trabalho e não apenas mantê-los como cuidadores, porque era o que eles faziam”, diz Rubia.

As aulas presenciais do Proinfantil acontecem nos polos do curso nos municípios e as atividades a distância são acompanhadas por tutores da Secretaria Municipal de Educação local. Os professores formadores, que ministram o curso nos municípios são qualificados por um grupo de 13 universidades federais que aderiram ao programa.

O Proinfantil é um programa do Ministério da Educação em parceria com municípios e universidades. Participam municípios de 18 estados, sendo oito da região Nordeste: Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe; quatro da região Norte: Amazonas, Rondônia, Pará e Roraima; três do Centro-Oeste: Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; dois do Sudeste: Minas Gerais e Rio de Janeiro; um do Sul, Paraná.

(Assessoria de Comunicação SEED/MEC)

Professora da área rural procura fazer trabalho social com alunos

Professora Anecy Oncken

A professora Anecy Oncken, do Paraná, leciona há 11 anos. Natural de Londrina, ela mora em Morretes há 16 anos. Sua experiência no magistério começou no Senac, depois ela lecionou em uma escola de cursos profissionalizantes, até que fez concurso para a rede municipal de educação. Com curso normal superior e pós-graduação em Tecnologias Aplicadas à Educação, ela dá aulas em duas escolas da zona rural.

No período da manhã ela trabalha na Escola Rural Municipal do Canhembora, no Povoado do Candonga, na zona do Rio Sagrado; à tarde, na Escola Rural Municipal de Barro Branco, localizada na Estrada de Antonina. “Nestas duas escolas tenho duas turmas – pré e primeiro ano. Gosto de dar aulas na zona rural, e procuro fazer um trabalho social em prol dos alunos,” conta.

Segundo ela, os alunos são de classe baixa e a própria família, na maioria das vezes, não tem convívio com lápis, livros e cadernos e pinturas. “Nós, professoras, sempre nos preocupamos em fazer o melhor para os alunos, mas a dificuldade vem até mesmo de nós, quando nos sentimos impossibilitados de dar bem mais para essas crianças tão desprovidas da verdadeira realidade da vida escolar”, ressalta.

Anecy desenvolve um projeto para estes alunos que é a confecção de um CD com fotos tiradas durante o ano escolar, para ser entregue no final do ano. “Eu sei que hoje ele não tem computador, nem mesmo DVD, mas um dia terá e poderá relembrar os momentos que passou no seu primeiro ano escolar”, salienta. Ela também guarda as atividades diárias dos alunos em uma pasta A/Z, dentro de sacos plásticos perfurados. A idéia é, no final do ano, poder analisar o desenvolvimento que tiveram e também possibilitar que os estudantes guardem o material e possam ver quando forem adultos.

Ela conta que, durante o ano, fazem campanha para arrecadar material escolar, guloseimas, roupas e brinquedos novos ou usados, tanto para usar na sala de aula como para possibilitar que, no encerramento de final de ano, os alunos possam levar para casa uma sacola com materiais a fim de que, no próximo ano, os pais não precisem comprar.

Com dois livros infanto-juvenis pedagógicos já editados – Tabuada Rimada dos Bichinhos e O Alfabeto Dorminhoco – a professora Anecy Oncken encaminhou a crônica abaixo para ser publicada no Jornal do Professor:

O Caminhão

Anecy Oncken

Tenho observado um aluno e me pego imaginando como é sua convivência com sua família. O pouco que sei é que sua mãe é deficiente e seu pai alcoólatra.

Certo dia, perguntando aos alunos sobre suas casas e o que possuíam nelas, algumas respostas me surpreendiam.

Um dos alunos respondia timidamente, muitas vezes balançando a cabeça, respondendo sim ou não. Tamanha foi minha surpresa ao saber que em sua casa não há mesa, fogão, televisão, etc.

Quando observo sua baixa produtividade nas atividades propostas, procuro não cobrar muito. Na hora do intervalo, vejo que ele gosta muito de pegar uma caminhãozinho para puxá-lo pela cordinha no imenso pátio da escola.

Outro dia, durante a aula, um enorme caminhão furgão fazia manobras perto da escola e percebi que o aluno tentava olhar pela janela. Foi quando disse:

- Vai lá Aluno, vai ver o caminhão!

Ele correu para o pátio, com uma expressão de felicidade e ansiedade. Andava de um lado para o outro, bem eufórico.

Tanto eu como a merendeira olhávamos e comentávamos, satisfeitas, sobre seu entusiasmo por ver aquele caminhão. Inclusive os outros alunos também observaram a euforia desse menino.

Fiquei muito emocionada por ver a imensa alegria proporcionada a esse aluno diante de um fato tão simples, tão corriqueiro.

E pensar que estamos na era da informatização e ainda encontramos a felicidade nos gestos mais bucólicos.

Flávia Motta (UFRRJ): educação infantil é uma etapa fundamental

Foto da professora Flávia Motta

Docente do Departamento de Educação e Sociedade do Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Flávia Miller Naethe Motta é professora convidada do Curso de Especialização em Educação Infantil da PUC do Rio de Janeiro. Formada em psicologia, com mestrado e doutorado em educação, Flávia Motta é membro do Grupo de Pesquisa Infância, Formação e Cultura (Infoc). Em sua opinião, a educação infantil é uma etapa fundamental na construção do pensamento mais complexo e o professor é aquele que vai mediar as relações que as crianças vão estabelecer com o seu contexto cultural e com os saberes do mundo.

Para ela, a escola é o espaço apropriado para a construção dos conceitos científicos que permitirão ao pensamento infantil uma passagem para um nível diferente de pensar, marcado pelas funções mentais superiores. Além disso, acredita que fatores como a perda de espaços anteriormente utilizados para as brincadeiras das crianças – como as ruas – e a redução do tamanho das famílias, fazem com que a escola acabe por ser um espaço, imprescindível, de convivência e de troca.

Jornal do Professor – Qual é a importância da educação infantil? Com qual conceito ela foi criada?

Flávia Motta – A educação infantil, a partir da Constituição de 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, foi reconhecida como um direito da criança, um dever do Estado e agora, paulatinamente deixa de ser uma opção da família, para constituir-se numa obrigação, com a aprovação da PEC 96A/03. A oferta da educação infantil, enquanto política de Estado, é o reconhecimento das crianças como sujeitos sociais de direitos.

A importância da educação infantil, entretanto, extrapola o aspecto social, quando pensamos o que ela pode significar para cada criança concreta que pode vivenciar essa experiência. Hoje reconhecemos que as crianças são sujeitos produzidos na e produtores de cultura. Sabemos que a socialização não é um processo vertical, de cima para baixo, onde as gerações mais velhas incutem valores nas mais novas. As crianças ressignificam o que o mundo ao seu redor oferece a elas e esse processo acontece de maneira intensa naquilo que chamamos hoje de cultura de pares. A possibilidade de se encontrar entre outras crianças propicia a intensificação deste processo que se dá desde muito cedo, com bebês ainda na creche.

Devemos reconhecer ainda a função do professor de educação infantil como aquele que vai mediar as relações que as crianças vão estabelecer com o seu contexto cultural e com os saberes do mundo. A criança constrói conhecimentos espontâneos para explicar a realidade ao seu redor. A escola, desde a educação infantil, é o espaço apropriado para a construção dos conceitos científicos que permitirão ao pensamento infantil uma passagem para um nível diferente de pensar, aquele que segundo Vigotski é marcado pelas funções mentais superiores.

Sabemos que a escola moderna teve um papel significativo na construção do sujeito da modernidade e do próprio sistema capitalista. De uma forma geral, ela foi pensada para atender a um modelo de criança oriunda das classes dominantes. Esse modelo de criança, que crescia numa cultura aproximada daquilo que era cobrado na escola, afastava ainda mais as crianças das camadas populares. Dessa forma, a educação infantil assumiu, desde muito cedo, um caráter compensatório, onde deveria propiciar às crianças mais pobres, um acesso a um mundo cultural legitimado pela cultura dominante. Essa educação que pode ser chamada de compensatória foi influenciada por Pestalozzi, Froebel, Montessori e McMillan. A pré-escola era encarada como uma forma de superar a miséria, a pobreza, a negligência das famílias. Junte-se a isso, o desempenho esperado na escola primária e a educação infantil tinha tudo para se tornar um espaço preparatório que deveria suprir aquilo que, nessa concepção, faltava às crianças.

Por outro lado, a educação infantil desenvolveu-se atrelada à necessidade das mães trabalhadoras, de terem um lugar onde deixar suas crianças. As creches supriam, dessa maneira, uma necessidade dos adultos (não que isso não fosse legítimo, mas sua motivação não estava naquilo que era efetivamente uma demanda infantil). Assim, antes de uma instituição educativa, a creche se configurava como uma entidade assistencial. Inicialmente podemos pensar então numa educação voltada para os cuidados e para o desenvolvimento intelectual – no sentido da cultura dominante – que as famílias de origem popular não podiam oferecer às suas crianças.

JP – Quais os níveis existentes na educação infantil e quais as principais diferenças entre eles?

FM – A educação infantil se divide em creche (0 – 3 anos) e pré-escola (4 e 5 anos). Na prática, durante muito tempo se discutiu a dicotomia entre o educar e o cuidar, como se uma fase demandasse mais cuidados e outra, mais educação. As pesquisas no campo educacional mostraram, entretanto, que essa era uma falsa dicotomia e que as duas características estão presentes em todos os níveis de escolaridade.

De qualquer forma, vemos hoje instituições profundamente marcadas pela cultura escolar, onde alfabetos são colocados nas paredes do berçário e as experiências de letramento são pensadas, não como apropriação de uma leitura crítica ou estética do mundo, mas como aquisição de ferramentas de codificação e decodificação da escrita e da leitura. Creio que a pré-escola acaba sendo mais cobrada dessa função escolarizada, enquanto a creche continua sendo percebida, muitas vezes, como espaço de guarda das crianças. Felizmente, essa concepção de educação infantil encontra críticos que propõem novos olhares, no dia-a-dia das escolas, na academia, nas pesquisas.

A obrigatoriedade da escolarização a partir dos quatro anos, no entanto, promove uma grave cisão na educação infantil, que, mais uma vez, se vê pensada nas duas fases que a compõem: creche e pré-escola. Na medida em que a creche fica excluída desse processo - e não se trata aqui de defender a sua obrigatoriedade! – temos uma diminuição da sua importância perante os órgãos públicos que devem garantir seu financiamento. A questão pode ser vista ainda pela ótica de que a existência de um direito, previsto na Constituição desde 1988, não é suficiente para a sua garantia, o que o faz valer é a sua demanda virar uma obrigação. Sem dúvida, aumentar a oferta de pré-escolas tem um lado extremamente positivo e provavelmente vai beneficiar crianças que hoje estão fora da escola. Os aspectos orçamentários presentes nesse debate também merecem destaque. Segundo a Emenda Constitucional nº 59/09, os recursos devem ser alocados prioritariamente na nova faixa de obrigatoriedade (novo § 3º do art. 212), o que significa que, a nível municipal, a ampliação dos recursos só pode se dar pela pré-escola, uma vez que o ensino médio não é de sua competência. O direito à creche, nesse contexto, parece ter deixado de ser exigível. De fato, a obrigatoriedade da escolarização dos 4 aos 17 anos está posta. Trata-se agora de discutir que escola é esta que será oferecida às crianças, lembrando ainda o quanto é artificial essa divisão que separa em universos distintos crianças até 5 anos e 11 meses daquelas que já completaram 6 anos. O que está em jogo é o modelo de educação a ser implantado nas escolas para as crianças até os 10 anos, fase em que ainda se situam na infância.

JP – O que é importante aprender nesta fase? O que as crianças desenvolvem nesta etapa da vida?

FM – Essa etapa é fundamental na construção do pensamento mais complexo. Nessa fase a criança está aprendendo coisas referentes aos saberes escolarizados, mas está também aprendendo muitas outras: o que é ser menino ou menina, qual a diferença dos papéis sociais de pessoas de diferentes etnias/raças, qual é o valor estético de uma produção mais autêntica ou de outra, mais voltada para a estética dos adultos, entre outras. Não é à toa que vemos muitas crianças terminarem a educação infantil realizando aqueles desenhos estereotipados que mostram casas, árvores e flores coloridas, bem dentro da idéia que nós adultos temos do que deve ser um desenho infantil. Se pensarmos em termos mais filosóficos, podemos afirmar que o que está em jogo nesse momento é a construção de uma moral, de uma ética e de uma estética que vão orientar o sujeito, não de forma determinista – pois as situações concretas de sua vida podem levá-lo a reformulá-las – mas de qualquer maneira, elementos que serão estruturantes de valores e, se ainda podemos usar esse conceito, tão criticado pelo pensamento contemporâneo, da sua identidade.

JP – A partir de que idade é importante que uma criança frequente a educação infantil?

FM - É complicado estabelecer idades que funcionem de maneira igual para sujeitos com histórias diferentes. De qualquer forma, acredito que o contato com pessoas para além do círculo familiar mais próximo é uma experiência rica desde a mais tenra idade. Atualmente, espaços que eram ocupados pelas crianças foram sendo perdidos; não se brinca na rua como antigamente, as famílias, de uma maneira geral estão mais reduzidas ou restritas aos núcleos mais centrais. Assim, a escola acaba por ser um espaço de convivência e de troca, imprescindível na atualidade.

JP – Quais as habilidades que um professor precisa ter para atuar neste nível de aprendizagem?

FM - Um professor, de qualquer faixa etária, deve ser alguém que tenha interesse por gente, goste de dialogar (verdadeiramente ouvindo o que o outro tem a dizer) e que procure desenvolver uma postura reflexiva de sua prática. Isso, no entanto, se aplica a professores desde a educação infantil até a formação universitária. Além disso, considero importante ainda que o professor se permita explorar aspectos relativos à cultura: música, filmes, museus, teatro, literatura, para que ele possa vivenciar experiências estéticas que possibilitem que ele seja um mediador das mesmas para seus alunos. Creio ainda ser importante que esse professor seja antenado com as culturas infantis, tanto naquilo que as crianças produzem, quanto naquilo que é produzido para elas, para ter elementos que permitam uma troca efetiva e uma crítica do que é ofertado para o consumo das crianças. Por fim, acho que deve ser alguém disposto a abrir mão de uma lógica adultocêntrica, que enxerga o mundo pelas lentes da cultura adulta.

JP – Em sua opinião, os professores de educação infantil estão sendo preparados de forma adequada pelos cursos de pedagogia? Por quê? Em caso negativo, o que precisaria mudar nos currículos?

FM - É complicado falar dos “professores” como é complicado falar das “crianças” generalizando aspectos de uma realidade que é muito complexa. Tenho certeza que temos excelentes programas de graduação, assim como reconheço que devam haver vários que deixam muito a desejar. O fato concreto é que a formação inicial e a prática precisam se articular através dos estágios, da pesquisa, das atividades de extensão e também de um movimento das escolas em acolher os novos professores e contribuírem em sua socialização profissional.

JP – Quais são as novas diretrizes da educação infantil? Quais os avanços que traz?

FM - O documento atualmente representativo das diretrizes governamentais são os Subsídios para Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica - Diretrizes Curriculares Nacionais Específicas Para a Educação Infantil, elaborado com a consultoria da professora Sonia Kramer e disponível na página do MEC. A revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil fundamenta-se numa concepção de criança enquanto sujeito sócio-histórico-cultural, cidadão de direitos. E reconhece que as instituições educativas devem considerar as especificidades e singularidades da criança, com ênfase em práticas de educação, nas quais está envolvida a dimensão do cuidado, responsáveis pelo desenvolvimento físico, emocional, afetivo, cognitivo, linguístico e sociocultural.

As propostas pedagógicas para a educação infantil devem atender às especificidades das crianças de 0 aos 6 anos, sujeitos sociais, produtores de cultura e produzidos na cultura. Ao longo deste período, vão sendo desenvolvidas a linguagem (verbal e não-verbal), afetividade emoções e sentimentos), a motricidade (os movimentos, a gestualidade, a expansão do corpo no espaço) e a cognição (o pensamento, a dimensão racional), constituindo-se nas interações sociais.

A ludicidade caracteriza o trabalho pedagógico nas instituições de educação infantil: o desenvolvimento e a aprendizagem são relacionados às possibilidades de brincar; a brincadeira é compreendida como uma forma de aprender o mundo por parte da criança. Para tal, é necessário garantir materiais lúdicos/brinquedos de qualidade e que o profissional que atua com a criança tenha conhecimentos sobre a cultura lúdica.

A educação infantil, como primeira etapa da educação básica, é direito social das crianças e de suas famílias, sem qualquer requisito de seleção. Além disso, há uma qualidade do trabalho cotidiano nas instituições de educação infantil que deve ser assegurada, considerando a identidade e a diversidade sócio-cultural das crianças e suas famílias; a organização do tempo em rotinas que equilibrem segurança e flexibilidade; ritmos individuais e referências familiares; vivências pessoais e experiências culturais; a organização de espaços deve torná-los acolhedores, desafiadores, saudáveis e inclusivos, e deve promover o contato com equipamentos culturais (livros de literatura; brinquedos; objetos; produções e manifestações artísticas) e com a natureza. Aspectos como higiene, conforto, relação apropriada entre a quantidade de adultos e crianças também devem ser observados.

As propostas pedagógicas das instituições de educação infantil devem respeitar o direito à liberdade, à exploração dos espaços, à brincadeira e à expressão de significados pelos movimentos, palavras, desenhos e outras formas de produção simbólica, bem como o direito das crianças à apropriação e construção dos conhecimentos e a ampliação do universo cultural. Devem ainda respeitar e acolher as crianças em suas diferenças; entendendo que são cidadãs de direitos à proteção e à participação social;

Os eixos de saberes e conhecimentos a serem contemplados são:

- As crianças e a arte: experiências estéticas e expressivas com a música, artes visuais e plásticas, cinema, fotografia, dança, teatro, literatura.

- As crianças, a leitura e a escrita: experiências de narrativa, de apreciação e interação com a linguagem oral e escrita, convívio com diferentes suportes e gêneros textuais orais e escritos.

- As crianças e o conhecimento matemático: experiências de exploração e ampliação de conceitos e relações matemáticas.

- As crianças e a natureza: experiências que possibilitem o contato, o conhecimento, o cuidado (a preservação) da biodiversidade e a sustentabilidade da vida na Terra.

As diretrizes sugerem ainda uma atenção especial às transições vivenciadas pelas crianças. Que envolvem, desde a passagem entre o espaço privado – da casa – ao público – da instituição, quando do ingresso da criança na creche, na pré-escola ou na escola, até aquelas que acontecem no âmbito do próprio segmento: entre as diferentes faixas etárias; entre instituições, no caso da passagem da creche à pré-escola; entre turnos e/ou entre docentes, no caso das crianças que frequentam a instituição em turno integral; e, num mesmo turno, entre os diferentes momentos que compõem as rotinas diárias.

JP – Qual o seu recado para o professor da educação infantil?

FM - Não sei se há um recado específico a ser dado, mas creio que ele deva ter consciência da importância da sua função e reconheça que os sujeitos com os quais se depara no cotidiano, por mais novos que sejam, têm uma história, uma cultura, valores que devem ser respeitados e trazidos para a escola como elementos constituidores das práticas educativas que vão se desenvolver ali. Lembro ainda que se há uma especificidade nesses sujeitos de pouca idade, é que eles produzem cultura, são nela produzidos, brincam, aprendem, sentem, criam, crescem e se modificam, ao longo do processo histórico que constitui a vida humana e, por fim, que as crianças são constituídas a partir de sua classe social, etnia, gênero e por diferenças físicas, psicológicas e culturais.