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JORNAL

Educação Étnico-racial

Quarta-feira, 20 de Outubro de 2010

Edição 45

EDITORIAL - Educação Étnico-racial

O tema da 45ª edição do Jornal do Professor é Educação Étnico-racial, por escolha de 39,04% dos leitores que votaram na enquete colocada em nossa página.

Trazemos para vocês experiências desenvolvidas na Escola Municipal Marina Garbarino, de Novo Hamburgo (RS) e na Escola Municipal Dr. João Alves dos Santos, de Campinas (SP). Mostramos, também, a experiência que está ocorrendo na rede municipal de ensino de Caxias (MA), onde os professores da área rural participam de curso de capacitação em educação quilombola.

A professora Wilma de Nazaré Baía Coelho, da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade da Amazônia (Unama) é a nossa entrevistada desta edição.

Ajude-nos a escolher o tema das próximas edições, votando na enquete colocada em nossa página. E aproveite para colaborar enviando sugestões, críticas, textos e músicas!

Seja bem-vindo!

Ação educativa é valiosa para superar preconceitos

Aluno entrevista o rei e a rainha do Grupo de Congada de Itatiba (SP).

Reconhecer a diversidade étnica, racial e cultural da sociedade brasileira; identificar, respeitar, criticar e repudiar todas as formas de relações preconceituosas, discriminatórias e excludentes são alguns dos objetivos do projeto desenvolvido na Escola Municipal Dr. João Alves dos Santos, em Campinas, desde 2004.

O projeto Preconceito e discriminação: passado e presente foi criado pelo professor de história, Eduardo Benedito Leite de Almeida, com a preocupação de elaborar uma estratégia de intervenção interdisciplinar e coletiva voltada a questões das relações étnicas e raciais bem como à história e às culturas africana e afro-brasileira.

Segundo ele, embora desconheça a ocorrência de algum caso de racismo na instituição, onde leciona há dez anos, acredita que a ação educativa é valiosa para a superação do preconceito e da discriminação. “A escola sempre trabalhou por uma cultura de respeito mútuo, respeito às diferenças, compreensão da diversidade étnica, racial, cultural e religiosa”, assinala Eduardo, que é licenciado em história com especialização em educação, ciência e tecnologia e em educação de jovens e adultos (EJA).

De acordo com a diretora Márcia Maria Gomes Silva, participam do projeto todos os professores da instituição, que atende alunos do ensino fundamental e da EJA. “Professores de diferentes disciplinas, séries, turmas e períodos incorporaram a temática das relações étnico raciais, história e cultura africana e afro-brasileira nos planejamentos, projetos e ações desenvolvidas”, ressalta Márcia Maria, pedagoga com pós-graduação em educação inclusiva e 20 anos de magistério.

Ela explica que a seleção de temas e conteúdos é realizada nos diferentes momentos de planejamento e nas reuniões de trabalho docente coletivo (TDCs). “A adesão à temática da história e cultura negra é voluntária e espontânea, professores que ainda não estão sensibilizados ou preparados para desenvolver a temática não são obrigados abordar o tema”, ressalta a diretora. De acordo com ela, a rede de ensino de Campinas desenvolve vários cursos de formação e capacitação destinados ao ensino das relações étnico raciais, história e cultura africana e afro-brasileira.

O projeto inclui diversas atividades: discussões, debates e produção de textos a partir da projeção de vídeos; seminários e apresentações de pesquisas e produções em sala de aula; trabalhos com letras de música que retratam questões relativas a preconceito e discriminação; trabalhos utilizando diferentes linguagens visuais, como vídeo, fotografia, iconografia; e confecção de cartazes, desenhos, charges, e histórias em quadrinhos, são algumas delas.

Além disso, os alunos participam de manifestações da cultura afro-brasileira, como o Encontro de Grupos de Congada realizado no município de Itatiba e a Festa da Lavagem das Escadarias da Catedral Metropolitana de Campinas. Participam, também, de vivências e oficinas, como a Oficina de Maracatu com a Casa de Cultura Tainá. Em 2010, devido à realização da Copa do Mundo na África do Sul, ocorreram algumas reformulações e adaptações no projeto, a fim de dar mais destaque ao estudo do continente africano.

Para Márcia Maria, é possível observar os resultados positivos trazidos pela realização do projeto: o despertar da consciência crítica e o repúdio a qualquer forma de preconceito e discriminação, além da reflexão acerca da diversidade étnica, cultural e religiosa.

(Fátima Schenini)

Professores fazem formação em educação quilombola

Grupo de professores

Contar a história do negro de uma forma como nunca se ouviu antes, fazendo uma releitura do seu papel na sociedade, devolvendo a sua autoestima e mostrando que muitos de nós temos um pouco de sangue negro é tarefa de mais de 60 professores e diretores da rede municipal de ensino que atuam em áreas quilombolas da zona rural de Caxias, no Maranhão.

Estes profissionais estão participando do Curso de Formação de Professores em Educação Quilombola, que faz parte do Projeto Escola em Ação: Vivendo a Diversidade. Eles estão tendo uma preparação direcionada e diferenciada para atender a estes alunos. O projeto é desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação, em parceria com a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad/MEC) e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). O curso, em quatro etapas, é coordenado pelos professores Robson Ribeiro, Jesus Andrade, Mercilene Torres, e Sandra Moura.

De acordo com a coordenadora Jesus Andrade, o curso trabalha a questão ético-social nas escolas da rede municipal. A zona urbana já foi trabalhada e agora é a vez de nove escolas da zona rural. A meta até 2012 é trabalhar com todos os professores do município e poder levar a mensagem aos cerca de 32 mil alunos. "Queremos incentivar o professor a ter ciência e valorizar as comunidades remanescentes dos quilombos. Nós temos a necessidade de dar visibilidade à cultura africana, à descendência que nós temos. O povo brasileiro tem identidade e precisa preservar a memória", acredita Jesus.

Segundo a coordenadora Mercilene Torres, com a formação dessa turma serão beneficiadas 800 crianças, em média. “Os professores vão levar para as áreas remanescentes de quilombo o treinamento que nós demos e ao mesmo tempo irão fazer as entrevistas com os moradores, resgatando a cultura local e envolvendo os alunos”, explica. Sua expectativa é que os alunos de todas as escolas envolvidas trabalhem em conjunto e que os professores possam, na próxima etapa, trazer o resultado desse trabalho de pesquisa de campo.

Para o professor Francisco Miranda, que leciona nos anos finais do ensino fundamental (6º ao 9º) da Unidade Integrada Municipal Nossa Senhora de Nazaré, no Nazaré do Bruno, este momento está sendo muito positivo e o curso veio reforçar aquilo que ele já vinha trabalhando. “Fiz parte do movimento negro universitário e desenvolvia um trabalho similar a esse nas comunidades remanescentes de quilombolas”, destaca. Francisco salienta ainda, que o curso veio facilitar a didática, com o uso de jogos educativos que ajudam no entendimento sobre a identidade racial.

(Luciana Lobão/Assessora Semeduc/Caxias/MA)

Escola busca resgatar e valorizar cultura da comunidade

Estudantes se apresentam no palco.

Resgatar a cultura local para construir a identidade da comunidade onde está inserida é um dos objetivos da proposta pedagógica adotada pela Escola Municipal Marina Garbarino, de Novo Hamburgo (RS). Há três anos, a instituição de ensino fundamental desenvolve práticas pedagógicas que buscam o resgate da identidade cultural do bairro Santo Afonso, onde está situada, integrado por pessoas de diferentes regiões do estado, do Brasil e até de outros países.

“Realizamos pesquisas com as famílias para conhecermos suas origens étnico-histórico-culturais, no intuito de contemplarmos o estudo e aprofundamento sobre todas as origens”, relata a coordenadora pedagógica da escola, Thaís Hoffmann dos Reis, há 11 anos no magistério. Segundo ela, procuraram reconhecer e valorizar cada uma, sem privilegiar nenhuma em especial. Entre os alunos da escola são encontrados afrodescendentes, indígenas, ciganos, e europeus (portugueses, alemães, italianos).

De acordo com Thaís, as atividades articuladoras desse trabalho na escola são as aulas de artes e o projeto CineArte, conduzidos pela professora Cláudia Beatriz Scholl Matter. “É nas aulas de artes que esta proposta de resgate cultural realmente emerge”, salienta a coordenadora pedagógica, pedagoga com especialização em administração, supervisão e orientação escolar e mestrado em linguística aplicada. Ela conta que os alunos já produziram três filmes contando a trajetória migratória e imigratória da população do bairro.

Em 2009, a instituição resolveu realizar um musical de Natal que representasse a diversidade étnica de todo o planeta. “Isto significava ir além das etnias que se entrelaçavam na nossa comunidade”, destaca Thaís. Fizeram um levantamento das etnias e religiões existentes na comunidade e, a partir dos dados obtidos, foi feito um estudo detalhado, dividido entre as turmas.

O musical, encenado por 170 alunos e professores, recontava a história cristã do nascimento do Jesus, com o nascimento de um menino para cada um dos continentes. Além da diversidade étnica, o musical abordava também a diversidade de religiões. “Resolvemos que seria importante apresentar questões relacionadas às religiões afro-brasileiras”, destaca Thaís. O cenário e os figurinos do espetáculo foram feitos pelos próprios alunos a partir de material de reciclagem trazido por eles e pelos professores. O material não utilizado foi revendido para usinas de reciclagem do bairro e o dinheiro arrecadado foi usado para o pagamento dos ônibus que conduziram os estudantes, suas famílias e amigos para o Centro de Cultura do município, onde foi realizada a apresentação do musical.

Ela diz que a escola tem procurado desenvolver o estudo e a pesquisa das questões étnico-raciais em todas as áreas, mas acredita que ainda precisam evoluir mais nessa jornada pedagógica. “Temos percebido que gradativamente mais e mais os professores estão se envolvendo na proposta de resgatar a identidade cultural da nossa comunidade”, assinala.

Este ano, a Marina Garbarino está trabalhando com o resgate das narrativas orais sobre a cultura e costumes de cada povo. Também estão trabalhando com a literatura de cordel produzida pelos alunos e estudando sobre os povos indígenas e africanos. Thaís explica que a escola vem incorporando no seu currículo o estudo das várias etnias, pois não quer contribuir para a construção de uma sociedade que torna seus sujeitos invisíveis.

Ela acredita que as escolas, de maneira geral, durante muito tempo trabalharam com a ideia de que apenas alguns povos tinham sido importantes na construção histórica, cultural e social brasileira. Apenas os povos de origem europeia eram citados como aqueles que desbravaram nossas terras, mas sabemos que outros, não menos importantes, foram e são sujeitos da nossa história, da nossa cultura, das nossas raízes”, defende. Em sua opinião, as leis 10.639/2003 e 11.645/2008 vieram para afirmar que está mais do que na hora da escola assumir seu compromisso na formação dos jovens, desmistificando e rompendo com preconceitos e dogmas.

(Fátima Schenini)

Trabalho é enriquecedor, diz tutora do Núcleo Tecnológico de Água Boa

Professora Marineide Nascimento

O bom desempenho de Marineide Gonçalves da Silva Nascimento como professora da rede estadual de ensino de Mato Grosso, bem como sua habilidade para trabalhar com alunos, principalmente de ensino médio, fizeram com que fosse convidada a exercer a função de tutora do Núcleo Tecnológico Municipal de Água Boa (NTM).

Formada em história e com pós-graduação em Planejamento Educacional, Marineide Nascimento está no magistério há 13 anos. Há cerca de um ano, ela administra cursos de formação continuada para os professores da rede municipal. Atualmente atende 13 turmas: dez participam do curso de 40 horas, de Introdução à Educação Digital e três fazem o curso de 100 horas. Entre as instituições participantes estão cinco escolas do campo e uma escola indígena, totalizando 143 professores.

Ela diz que seu trabalho consiste em oferecer subsídios teóricos e metodológicos, além de práticas que possibilitem que professores e gestores compartilhem conhecimentos e reflitam sobre as TICs e formas de utilização na prática pedagógica.

“Posso afirmar com segurança e satisfação que está sendo muito enriquecedor poder trabalhar com os professores e principalmente contribuir para com a formação de cada professor”, destaca Marineide, que neste ano de 2010 criou um projeto com o tema Blog como ferramente educativa. O projeto apoiou o I Concurso de blogs educativos, com as categorias escola e professor, que será julgado no mês de novembro.

Leia, abaixo, o texto encaminhado pela professora Marineide Nascimento ao Jornal do Professor.

Blogs como ferramentas pedagógicas

*Marineide Nascimento

Hoje estamos vivendo num mundo globalizado em que o uso das tecnologias de informação e de comunicação se torna indispensável. Temos sistemas sofisticados que, sem dúvida, tornam mais veloz a comunicação e a troca de informações entre as pessoas e em qualquer parte do mundo. Com o uso das TICs temos uma aproximação, mesmo que virtual, entre professores e alunos. As relações estabelecidas e as formas de comunicação entre os sujeitos são facilitadas e se dão de forma rápida podendo se dar por diversos meios: chat, fórum, e-mail, diário de bordo, e blog são alguns deles. Desse modo, cabe a nós, educadores, utilizar adequadamente os recursos dessas tecnologias, explorando seu potencial pedagógico, tendo em vista a configuração de novos ambientes de ensino e aprendizagem, e a otimização de um novo paradigma centrado na interdisciplinaridade, interatividade e cooperação.

Vejo que quanto mais houver a preocupação com a preparação, criação e adequação das aulas, mais facilidade os alunos terão em se apropriar das ferramentas, dos conteúdos, de estabelecer relações, vencendo os desafios diante do novo e para alguns até desconhecido mundo das TICs e assim, se sentirão convidados a também fazer uso de programas e explorar outras ferramentas virtuais.

Tudo isto interfere, sem dúvida, na aprendizagem por parte dos alunos e na própria relação estabelecida entre os envolvidos. Não basta ter os recursos disponíveis, é necessário saber suas potencialidades e utilizá-los de forma a viabilizar uma relação com os alunos que seja, cooperativa, colaborativa, construtiva. Uma relação em que há o diálogo e que se acredita e se prioriza a construção do conhecimento.

O Núcleo de Tecnologia Municipal (NTM) implantou, em 2010, o I Projeto com o Concurso de Blogs Educativos do Município de Água Boa. Ele tem como finalidade fomentar e promover o uso das novas tecnologias de informação e comunicação e do blog como recurso pedagógico para divulgar e produzir conteúdos e conhecimentos dentro e fora do espaço escolar, envolvendo gestores de escolas, técnicos, coordenadores, professores e alunos. A utilização de blogs na educação possibilita o enriquecimento das aulas e o desenvolvimento de projetos através da publicação e interação de idéias na internet. Basta adequá-los aos objetivos educacionais, para que o conhecimento seja construído através da interação das ferramentas tecnológicas da informação e comunicação, criando um ambiente favorável para a aprendizagem.

A finalidade deste concurso será estimular o professor da educação básica, de todas as áreas do conhecimento, a utilizar as tecnologias em sua prática pedagógica. Contribuindo assim, para a formação do educador quanto ao uso das tecnologias no processo educativo. Considerando as dificuldades que os professores têm em ministrar suas aulas inserindo o recurso das tecnologias, este concurso sobre a tecnologia na escola veio contribuir nesse sentido.

O blog é uma ferramenta disponível na web que possibilita a comunicação, divulgação e interação entre escolas, alunos, professores e até mesmo a comunidade externa. Pode ser definido como um site ou página na internet (geralmente gratuito) que possibilita ao usuário sem conhecimento de programação, postar textos e conteúdos para serem compartilhados com outros usuários com interesses afins, podendo ser atualizado constantemente. Difere de um site, por ser mais dinâmico na postagem de conteúdos e edição, que podem ser feitos continuamente, mas sua principal característica é permitir a interação com os leitores.

No contexto escolar, o blog pode divulgar as ações e projetos da escola para alunos, professores, a comunidade e o mundo. Mas não se reduz a um veículo de comunicação, pode e deve ir além de ser somente um espaço de diálogo, conversa entre os atores envolvidos no processo de ensino aprendizagem. Para o educador, pode ser um espaço de construção coletiva de textos, divulgação de conteúdos, trocas e interações e opiniões através das ferramentas de postagem de comentários sobre o tema apresentado e discutido em sua disciplina, permitindo ao usuário construir seu conhecimento em várias dimensões cognitivas em que se processa a aprendizagem.

A aplicabilidade da ferramenta em contexto educacional terá êxito se houver uma capacitação dos professores, onde o aluno é co-autor de seu processo de aprendizagem e o professor um mediador dos conhecimento adquiridos pelos alunos. Assim, pretende-se por meio deste concurso, disponibilizar um espaço de possibilidades para que os professores possam mostrar seu trabalho.

*professora e tutora de curso do NTM de Água Boa/MT

Wilma de Nazaré Baía Coelho: lei pode ajudar a superar o racismo

Foto de Wilma de Nazaré B. Coelho

Professora da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade da Amazônia (Unama), Wilma de Nazaré Baía Coelho coordena a linha de pesquisa Formação de Professores e Currículo, no Programa de Pós-graduação em Educação da UFPA.

Membro da Associação Brasileira dos Pesquisadores Negros (ABPN), ela coordena, também, o Núcleo de Formação de Professores e Relações Étnico-raciais (Gera/UFPA e Gepre/Unama) e o Curso de Especialização em Relações Étnico-raciais para o Ensino Fundamental/Uniafro. Pedagoga, com mestrado em Gestão e Ensino Superior e doutorado em Educação, sua atuação, na área de educação básica e superior, tem ênfase, principalmente, na formação de professores, diversidade étnico-racial, relações raciais, diversidade cultural e representação social.

Em entrevista ao Jornal do Professor, Wilma Coelho afirma que a Lei nº 11.645 tem importância fundamental para a educação, pois dá visibilidade e tira de segundo plano a questão do preconceito e da discriminação. Em sua opinião, as escolas brasileiras reproduzem o racismo que há na sociedade, tanto de forma velada quanto explícita, produzindo prejuízos enormes. Para modificar essa situação, sugere algumas medidas que incluem a capacitação dos professores, a reformulação do currículo, além de discussões sobre o tema para a formulação de alternativas. “Há que se desvincular o conteúdo relativo à África, à cultura afro-brasileira e às populações indígenas do exótico e torná-lo um conteúdo tão relevante quanto aquele relativo à história europeia”, defende.

Jornal do Professor - O povo brasileiro, de maneira geral, acredita que não existe racismo no Brasil. Qual sua opinião sobre isso?

Wilma de Nazaré Baía Coelho – Infelizmente, a escola é, em parte, bastante responsável por essa situação. Nas pesquisas realizadas pelo núcleo que coordeno (Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Formação de Professores e Relações Étnico-raciais/GERA), percebe-se que os professores reproduzem muitas práticas discriminatórias ou racistas. Muitos assumem o mito de formação da sociedade brasileira, aquele no qual o branco aparece como elemento civilizador, o negro com o trabalho e o indígena com a alegria, como verdade. A falta de reflexão sobre a questão faz com que os professores não atentem para o conteúdo racista de diversas práticas, como a seleção da “menina mais bonita”; a referência à cor, quando se trata de alunos negros ou pardos; o uso de ressalvas compensatórias para a referência à cor etc. As recentes políticas afirmativas são benéficas porque incluem a questão nos processos de capacitação dos professores em exercício e nos processos de formação inicial dos professores.

JP – Há racismo nas escolas brasileiras? De que forma ele se manifesta? Quais os prejuízos que pode acarretar?

WNBC – Há. Lamentavelmente não poderia ser diferente. A escola não é um organismo estranho à sociedade. Ela reproduz, em larga medida, aquilo que a sociedade elege como padrão. O racismo presente na escola se manifesta da mesma forma que se manifesta na sociedade: na maior parte dos casos de forma velada – na reiteração dos padrões de beleza, no estabelecimento de vínculos afetivos e no uso de epítetos que se querem carinhosos e integradores (“Pelé, meu negão” etc.); mas ocorre também de forma explícita – nas formas de representação do negro e do índio nos livros didáticos, na eleição dos conteúdos relacionados à memória histórica brasileira, no lugar dispensado às populações afro-brasileiras e indígenas na construção da sociedade nacional, especialmente após a Independência.

Os prejuízos da manutenção do racismo nas escolas são enormes: em primeiro lugar ele exclui todos aqueles que não se enquadram no padrão “branco”; em segundo lugar, ele prejudica a compreensão e a internalização de valores da cidadania para a parcela discriminada, porque acaba por relegar aos não “brancos” a condição de atores de segunda categoria, com participação coadjuvante nos processos históricos que formaram a sociedade brasileira e com participação subalterna na sociedade atual.

Por fim, para concluir a resposta (mas, infelizmente, poderíamos traçar aqui um imenso rol de atrocidades), o racismo institui uma rotina de violências – que nem sempre descambam para a agressão física, mas não são menos nocivas por serem verbais – que apequenam, fazem sofrer, tornam mais dolorosos os processos de constituição da pessoa, da personalidade, da autonomia, prejudicando a conformação da auto-estima e da auto-confiança, valores essenciais ao homem.

JP – O que fazer para modificar a situação de racismo nas escolas? A senhora acredita que discutir o tema pode ajudar a reduzir o racismo?

WNBC – Em primeiro lugar, não se pode esquecer que o racismo não é uma condição inata. Essa consideração, formulada por mais de uma figura importantíssima na constituição da sociedade ocidental, é fundamental para que se possa projetar a erradicação do racismo. Discutir o tema é importante, mas não pode ser a única estratégia e nem a mais importante, se a discussão servir apenas para momentos de catarse, no qual os atingidos pela discriminação manifestam sua indignação. Não estou recusando a importância da catarse, mas afirmando que temos de seguir em frente para construir algo positivo. Nesse sentido, a discussão deve atentar, especialmente, para a formulação de alternativas. Capacitar o professor para perceber o racismo e para combatê-lo me parece imperativo. Reformular o currículo também é importante. Chega a ser contraditório afirmar que somos um país multicultural e diverso e manter um currículo marcadamente eurocêntrico. Há que se desvincular o conteúdo relativo à África, à cultura afro-brasileira e às populações indígenas do exótico e torná-lo um conteúdo tão relevante quanto aquele relativo à história europeia.

JP – O que fazer quando o próprio professor tem preconceito?

WNBC – Essa reprodução, que destaco aqui, tem duas razões: em primeiro lugar, porque a instituição é formada por agentes sociais que, a despeito dos habitus* diversos, contribuem para a reprodução das estruturas da cultura dominante, no que tange à questão racial; em segundo lugar, por que a instituição se omite de cumprir a sua função de fazer emergir um novo habitus, profissional, no qual o preconceito, o racismo e a segregação não se manifestem – ainda que persistam na convicção de cada um dos agentes. Os desdobramentos de tais processos resultam, na criança, a constituição de uma visão negativa de si mesma, especialmente quando os professores são os próprios agentes da discriminação. Deveremos então, enfrentá-los ampliando o debate acerca da temática e consolidando políticas de formação continuada nos espaços educativos.

JP – Qual é a importância da Lei nº 11.645 para a educação?

WNBC – Fundamental, para dizer tudo. Ela estabelece para professores, intelectuais, universidades, cursos de formação de professores e escolas de educação básica a necessidade de enfrentar a questão. Ainda que tenha suscitado incompreensões, ela introduz a necessidade da discussão e permite a emergência de formulações de toda ordem – o que, por extensão, permite que a escola, a universidade, enfim, e os intelectuais se confrontem com as próprias posições sobre o assunto. Até onde percebo, a lei levanta a necessidade de tomar posição e isso é essencial nessa questão – ela dá visibilidade, tira do segundo plano a questão do preconceito e da discriminação.

Acredito que ainda existem lacunas a serem preenchidas. Mesmo assim, é uma das formas concretas de se discutir o problema, sendo um dos caminhos para se debater questões como as cotas para as chamadas minorias nas universidades públicas. A legislação que trata da introdução da temática cultural afro-brasileira, africana e indígena na educação básica e na formação de professores não aponta para a criação de uma disciplina específica nos currículos. A temática tem de ser trabalhada na matriz curricular da educação básica e dos cursos superiores, fazendo parte das disciplinas como um todo. Portanto, dentro dessas áreas, há as disciplinas que as comportam. O que se pretende é discutir a temática no “corpo documental” da escola, de forma enraizada – de modo que a escola estabeleça interlocução com os agentes escolares, com a comunidade e com movimentos sociais. O fortalecimento dessa discussão dar-se-á também a partir dessas parcerias e compreensão de divisão de responsabilidades entre os diversos setores sociais.

JP – Os professores estão preparados para dar aulas sobre a temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena? Como prepará-los?

WNBC – Nas pesquisas do Núcleo-Gera, na Região Norte, observa-se não somente as práticas em execução, assim como seus documentos (regimentos, projetos pedagógicos e projetos escolares), professores, alunos e a relação deles com o entorno. Embora os gestores das escolas que pesquisamos informem sobre a existência de práticas sistemáticas na maioria das escolas, constatou-se que havia um descompasso entre informações e realidade. Nestas, observamos a ocorrência de ações mais pontuais que sistematizadas. Constatou-se que, de certo modo, há um número diminuto de escolas que apresentaram práticas mais sistematizadas em relação à discussão étnico-racial em seus documentos. Nelas, as aulas com enfoque sobre a cultura afro-brasileira e africana são ministradas por professores negros e autodeclarados brancos. Mas os pesquisadores perceberam que as práticas mais sistematizadas ou mais enraizadas são desenvolvidas por professores negros. Os cursos de formação de professores não têm atentado, como deveriam, para o lugar crucial da questão étnico-racial, não apenas na formação da identidade, mas na construção da autoestima e, consequentemente, no desempenho escolar do aluno. Se ele não se reconhece como igual ao padrão aceito e legitimado pela sociedade, não se esforça para apreender um conhecimento que não apenas não o reconhece, mas o exclui. Além disso, as teorias pedagógicas em voga nas disciplinas e teses formuladas nos cursos de formação de professores não são utilizadas para se pensar a questão étnico-racial e se problematizar o quanto essa questão serve para a reflexão sobre a escola como um lugar de reprodução do preconceito. Da mesma forma, esse aparato não é utilizado para se pensar o ensino formal como um caminho para sua superação.

* Habitus – De acordo com a Wikipédia, o conceito de habitus foi desenvolvido pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu com o objetivo de por fim à antinomia indivíduo/sociedade dentro da sociologia estruturalista. Relaciona-se à capacidade de uma determinada estrutura social ser incorporada pelos agentes por meio de disposições para sentir, pensar e agir.