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JORNAL
Edição 34 - Recreio Criativo
08/02/2010
 
ou

Christiane Gomes (UFMG): recreio é campo fértil para a vivência de atividades culturais lúdicas

Para Christianne Gomes, da UFMG, o recreio escolar é fundamental.

Para Christianne Gomes, da UFMG, o recreio escolar é fundamental.

Autor:Arquivo pessoal


Professora e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Christianne Luce Gomes é graduada em educação física, com doutorado em educação e tem vários livros e artigos publicados sobre a temática do lazer.

Ela é coordenadora pedagógica do Centro de Estudos de Lazer e Recreação (Celar) e líder dos grupos de pesquisa Otium - Lazer, Brasil & América Latina e Lazer, Cultura e Educação (Lace). Coordena, ainda, no período 2009-2011, o GTT Lazer do Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (Conbrace/CBCE), associado à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). E integra a comissão responsável pela elaboração do projeto de criação do curso de licenciatura em educação física: esporte, lazer e meio ambiente na América Latina, da Universidade Federal de Integração Latino-americana (Unila).

Em entrevista ao Jornal do Professor, ela ressalta que o recreio escolar deve fundamentar-se no lazer, que é uma necessidade humana importante em qualquer idade, e deve ser concebido, valorizado e reconhecido como campo fértil para a vivência de atividades culturais lúdicas. Em sua opinião, a escola pode sugerir e estimular algumas atividades para a hora do recreio, mas a comunidade escolar deve ter liberdade para optar ou não pela participação ou assistência. O recreio “representa um convite para viver o momento presente, interagir com pessoas e grupos, explorar o tempo/espaço, construir experiências significativas para quem as vivencia e para incluir a ludicidade no dia a dia”, acredita.

Jornal do Professor - O recreio escolar é importante? Por quê?

Christianne Gomes – Sim, é fundamental. Vários argumentos podem ser utilizados para justificar essa afirmativa, sendo que o mais comum é aquele que diz que o recreio escolar é importante por ser um intervalo necessário para aliviar as tensões e compensar o desgaste do trabalho escolar, fazendo com que estudantes e professores tenham mais condições de suportar o estresse da sala de aula. Esta justificativa esvazia o significado do recreio e deveria ser repensada. Ela se fundamenta no pressuposto de que o trabalho produtivo é um valor supremo e absoluto e que toda a vida humana deve se resumir a ele, pensamento do qual discordo e que infelizmente predomina em sociedades desiguais e excludentes como a brasileira.

O trabalho é importante enquanto possibilidade de realização humana e certamente seu valor deve ser reconhecido, mas, uma vida dotada de sentido e de qualidade precisa englobar outras atividades comumente negligenciadas na sociedade atual como a cultura, o lazer e a família. Ao invés de ser visto como momento de reposição de energia, o recreio escolar precisa ser concebido, valorizado e reconhecido como campo fértil para a vivência de atividades culturais lúdicas.

JP – Em sua opinião, existe alguma faixa etária na qual o recreio seja mais importante?

CG – Muitas pessoas acreditam que recreio é importante apenas para as crianças, principalmente para as pequenas, opinião da qual não compartilho. Sendo o lazer uma necessidade humana e uma possibilidade de produção de cultura, pessoas de todas as faixas etárias podem e devem vivenciá-lo, aprendendo a valorizá-lo e a desfrutá-lo de maneira crítica e criativa.

JP – As escolas devem sugerir ou incentivar algumas atividades na hora do recreio, em detrimento de outras? Por quê?

CG – Como do meu ponto de vista o recreio escolar deve fundamentar-se no lazer, uma de suas condições básicas é o respeito pela possibilidade de escolha. Quando uma escola pretende construir novas estratégias no sentido de ressignificar o recreio, pode sugerir e estimular algumas atividades, mas, precisa respeitar o princípio da “adesão espontânea” por parte da comunidade escolar. Assim, cada pessoa pode optar pela participação, pela assistência (que também é uma forma de participar) ou até mesmo pela não participação, caso prefira se envolver com alguma outra coisa ou simplesmente não fazer nada por um momento. Ou seja, participa quem estiver interessado e receptivo a novas propostas, sejam estudantes, professores, dirigentes e funcionários, o que pode estimular novas formas de convivência e da constituição de laços positivos entre os componentes da comunidade escolar.

JP – Como as escolas podem contribuir para a realização de recreios mais criativos? Algumas instituições promovem diferentes atividades na hora do recreio, como jogos e apresentações que estimulam o talento dos alunos.

CG – A escola precisa, inicialmente, pesquisar os interesses culturais lúdicos da comunidade escolar procurando envolver pessoas de todos os seus segmentos. No processo de identificação de interesses poderão ocorrer surpresas que, a princípio, podem não ser vistas como “recomendáveis” para um contexto educativo. Em geral, as preferências de um determinado grupo estão relacionadas com os valores que circulam no meio em que ele vive e com os conteúdos culturais ali vivenciados. Não há dúvidas de que as pessoas aprendem muito ao participar de uma festa, cantar ou escutar uma música, dançar uma coreografia ou simplesmente ver TV. Contudo, lamentavelmente, tudo isso pode estar vulnerável à chamada indústria cultural do entretenimento, que na maioria das vezes estimula a passividade e o consumismo destituídos de crítica ou reflexão.

Esses conteúdos não devem ser negados, pois, são os “saberes” que eles trazem de seus contextos, que apreciam e com os quais se identificam naquele momento. O desafio é superar preconceitos e aceitá-los dentro da escola como pontos de partida para o aprendizado criativo, para estimular o pensar crítico e para ampliar o acervo cultural do grupo – que, em contrapartida, precisa estar aberto para conhecer outras possibilidades e diversificar o seu leque de experiências.

Há um velho ditado que diz que “gosto não se discute”. Claro que se discute, porque o gosto é conformado segundo determinados interesses e muitas vezes esta manipulação não está clara para todos, perpetuando assim relações de dominação, discriminações, consumismo e alienação. A regra é simples: Se nunca fui ao teatro e não sei o que isso significa como posso gostar deste conteúdo cultural? Suponhamos que eu tenha assistido a uma comédia e passe a gostar deste tipo de produção. Mas, teatro se resume à comédia? E quando esta é baseada em clichês comprometidos com o riso fácil que reforça estereótipos, discriminações e exclusões? O que penso de tudo isso? À medida que aumenta o nosso grau de compreensão são reduzidas as chances de sermos manipulados.

Enquanto educadores, precisamos nos comprometer com a educação crítica para a autonomia, e ela também deve ser construída por meio do lazer e da vivência de manifestações culturais, tais como o jogo, a brincadeira, a festa, o passeio, a viagem, o esporte, as formas de artes (pintura, escultura, literatura, dança, teatro, música, cinema, etc), entre várias outras possibilidades. Inclui, ainda, o ócio, uma vez que esta e outras manifestações culturais podem constituir, em nosso meio social, interessantes experiências de lazer e muitas delas podem ser vividas inclusive no recreio escolar.

JP - Há relatos de casos de violência e de bullying na hora do recreio. O que é possível fazer para evitar esse procedimento?

CG – É preciso que educadores, estudantes e familiares tomem consciência de que bullying é sério e corresponde a atitudes agressivas, repetitivas e intencionais que não devem ser mascaradas ou confundidas com “brincadeira”. Comportamentos agressivos geram vítimas e são pautados na violência física e/ou simbólica, estimulando a intolerância e a delinquência. Por isso precisam ser fortemente combatidos, especialmente nas instituições escolares, onde as vítimas são agredidas nos momentos em que se encontram mais vulneráveis e desprotegidas: nos intervalos entre as aulas, nos banheiros, na entrada/saída da escola e também no recreio. Do meu ponto de vista, evitar o bullying na escola é imprescindível e exige esforços coletivos. Educadores, familiares e estudantes precisam ter conhecimentos mais aprofundados sobre o tema para identificá-lo imediatamente e estar preparados para auxiliar aqueles que necessitam. As vítimas de bullying precisam ser orientadas a buscar ajuda na certeza de que serão ouvidas, compreendidas e amparadas, tendo garantido o seu direito de desfrutar de um ambiente solidário e seguro. Aqueles que presenciam abusos não devem se omitir por medo e insegurança, deixando de serem cúmplices da situação e os agressores devem ser responsabilizados e encaminhados a profissionais. Apesar da responsabilização do agressor ser inevitável, ao invés de investir em punições o caminho mais construtivo fundamenta-se na prevenção e na compreensão do problema com mais profundidade. Assim, torna-se imprescindível educar, orientar, estabelecer limites e exercitar o diálogo. A discussão do tema por meio de filmes, textos, matérias jornalísticas e outras estratégias de intervenção fundamentadas na ludicidade podem ser incluídas tanto nas atividades educacionais diárias e como nas atividades extras. A afetividade, a emoção, o respeito, a dignidade e a tolerância precisam ser trabalhados cotidianamente e pequenos cuidados podem ser muito eficazes para reduzir os perigos da violência dentro e fora dos muros escolares.

JP – Você acredita que as escolas e a sociedade, em geral, já despertaram para a importância do lazer? De que forma? Em caso negativo, o que seria necessário para isso?

CG – Em parte, porque a temática do lazer ainda é considerada “nova”, causa estranheza e gera muitas contradições, pois, fomos educados para valorizar o trabalho e a produtividade. Sobre este aspecto vale lembrar que, a contragosto de crianças e adolescentes, em nossa sociedade sacrifica-se a infância e a juventude em nome de uma suposta “preparação para o futuro”; na fase adulta e na maturidade vive-se uma rotina extremamente desgastante porque a regra de ouro é “não perder tempo, pois tempo é dinheiro”; e chega-se a uma velhice totalmente sem sentido porque a pessoa foi educada apenas para trabalhar e, uma vez ausente do processo produtivo, não é raro sentir-se inútil e desprovida de qualquer valor. É assim que a tão sonhada aposentadoria pode tornar-se um pesadelo, principalmente em sociedades como a nossa, marcadas por inúmeras formas de exclusão. Precisamos romper com este ciclo e a educação adquire papel fundamental neste processo ao preparar os estudantes para desenvolverem não somente o seu potencial cognitivo, mas também o potencial lúdico, o afetivo, o gestual, o social, o político, o cultural, o ecológico e tantos outros que vêm sendo negligenciados dentro e fora das escolas. Nossa existência precisa ser enriquecida com o lazer e com as inúmeras formas de sociabilidade e de desenvolvimento pessoal e social. O recreio escolar pode ampliar oportunidades para isso, representando um convite para viver o momento presente, para interagir com pessoas e grupos, explorar o tempo/espaço, construir experiências significativas para quem as vivencia e para incluir a ludicidade no dia a dia. Isso é essencial para todos nós.

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