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JORNAL
Edição 41 - Educação e Cidadania
28/06/2010
 
ou

Escola precisa criar condições para o exercício da cidadania

Para Ângela Antunes, escola deve criar condições para o exercício da cidadania.

Para Ângela Antunes, escola deve criar condições para o exercício da cidadania.

Autor:Arquivo pessoal


A diretora de Gestão do Conhecimento do Instituto Paulo Freire, em São Paulo (SP), Ângela Maria Biz Rosa Antunes, acredita que a escola precisa criar condições para que todos os segmentos escolares possam exercer a cidadania.

Em sua opinião, a escola deve oferecer oportunidades para que as crianças e jovens possam aprender a decidir coletivamente, a vivenciar e a experimentar a validade do diálogo crítico como mediador dos conflitos, a construir, em grupo, acordos temporários ou mais duradouros, a lidar com a diferença e a divergência.

“Educar na, para e pela democracia implica criar espaços de decisão e de vivência de princípios éticos, de solidariedade, de justiça, de diálogo”, destaca Ângela Antunes, que é formada em letras e em pedagogia, mestre em administração escolar e doutora em educação.

Em entrevista ao Jornal do Professor, ela cita alguns exemplos de ações que a escola pode utilizar a fim de criar condições para o exercício da cidadania desde a infância.

Jornal do Professor – A senhora acredita que as escolas devem incentivar ações de cidadania entre os alunos? De que forma?

Ângela Antunes – Paulo Freire afirmava que “uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos, em suas relações uns com os outros e todos com o educador ou a educadora, ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos” (Pedagogia da Autonomia). Sem ações de cidadania entre os alunos, acredito que a “experiência profunda de assumir-se” fica impossibilitada. Mais do que um discurso favorável à cidadania, a escola precisa criar condições de os alunos, os pais, a comunidade, enfim, os diferentes segmentos escolares exercitarem-na no cotidiano da unidade educacional.

Dependendo de vários fatores, ações de cidadania podem acontecer de forma mais ou menos intensa em cada espaço, mas é sempre possível fazer algo para começar. Recorro ainda a Paulo Freire: “a melhor maneira que a gente tem de fazer possível amanhã alguma coisa que não é possível de ser feita hoje, é fazer hoje aquilo que hoje pode ser feito. Mas se eu não fizer hoje o que hoje pode ser feito e tentar fazer hoje o que hoje não pode ser feito, dificilmente eu faço amanhã o que hoje também não pude fazer...”

Dessa forma, o que pode ser feito para incentivar ações de cidadania entre os alunos? A seguir, algumas sugestões:

A avaliação: Criar condições de participação dos alunos nos Conselhos de Classe, preparando-os para tal tarefa. Como tem sido os Conselhos de Classe? Quem avalia? Avalia o quê? Sob que critérios? Qual a participação dos alunos? Eles “fazem parte” desse processo? Eles “tomam parte” nas decisões? Eles são apenas comunicados do resultado? O que a escola, o que a família, o que os professores e os próprios alunos fazem com o resultado da avaliação? Em que medida a avaliação é um exercício de cidadania? Ela pode fortalecer o senso crítico, a autoavaliação, o compromisso com a transformação e o amadurecimento pessoal se houver um trabalho de avaliação dialógica, processual e continuada na escola.

A hora do recreio: intervalo para brincar, conviver socialmente, agir coletivamente, ou para agredir, desrespeitar, ou ainda para isolar-se com o celular na mão, mandando torpedos ou mergulhados nos joguinhos eletrônicos? Como são os intervalos das escolas? Como as crianças, adolescentes, jovens ocupam o tempo do recreio? Às vezes, são nesses momentos em que mais ocorrem agressões (físicas e simbólicas): há xingamentos, há brigas nas filas da merenda, há desrespeito com as crianças portadoras de deficiência, há desperdício dos alimentos, etc. A escola pode tornar o recreio um espaço de exercício de cidadania, construindo princípios de convivência, de forma dialógica e coletiva. Resgatando formas de brincar que promovem a interação humana na perspectiva da cultura da paz, reinventando esse tempo, com espaços para radioescola, para apresentação de poesias, de atividades artístico-culturais das crianças e das famílias.

O projeto político-pedagógico: Quem elabora o projeto da escola? Em que medida as crianças, adolescentes, jovens são envolvidos nesse processo? O projeto da escola contempla o projeto de vida das crianças? A escola oferece condições para que os alunos ofereçam contribuições ao projeto? Outro dia eu estava participando da inauguração de uma escola municipal de Sorocaba e vi uma criança muito atenta ao que estava acontecendo. Aproximei-me dela e comecei a conversar. Ela se chamava Talita e tinha seis anos. As aulas já haviam começado há alguns dias. A inauguração oficial estava acontecendo posteriormente ao início das aulas. Eu perguntei se ela estava gostando da escola. Com muita alegria e de forma enfática, ela respondeu que estava gostando muito. Eu perguntei de que ela estava gostando. Ela me respondeu que a escola estava bonita, limpinha, tudo novinho, tinha jardim e ainda por cima tinha muitos amigos ali e a professora era legal. Eu fiquei empolgada com a capacidade de argumentação da Talita e resolvi continuar a conversa. Perguntei se havia algo a melhorar na escola. Com a mesma ênfase que havia afirmado que gostava da escola, afirmou que havia coisas a melhorar. Eu, espantada, comentei:

- Mas a escola é bonita, você gosta da professora, gosta do jardim, está tudo novinho, você tem amigos... o que mais pode melhorar?

Ela respondeu convicta:

- Não pode faltar sorriso. Se tiver mais sorriso, vai ficar mais bonita.

Ela me fez suspender a respiração por alguns segundos.

- E o que mais, continuei? Há mais alguma coisa para melhorar?

Ela respondeu que a escola precisava ser pintada. Eu estranhei:

- Como assim, Talita? Já não está pintada? Acabou de ser inaugurada!”

Ela respondeu:

- Está pintada de adulto.

E o diálogo continuou:

- Como assim, Talita? Pintada de adulto?

- Está pintada de adulto porque está pintada de uma cor só. Precisa ser pintada de criança.

- E como uma escola pode ser pintada de criança?

- Escola pintada de criança tem várias cores e tem Mickey, tem Minnie, tem Pateta, tem a Mônica e tem florzinha.

- E quem deve pintar a escola, Talita? As crianças?

A Talita olhou para mim com ar de reprovação e impaciência e foi categórica:

- Não! As crianças não podem pintar.

- Por que, Talita?

- Porque as crianças pintam fora do risquinho e aí vai ficar feio.

- Como deve ser feito, então?

- As crianças devem escolher os desenhos e as cores e os adultos devem pintar, porque eles sabem pintar dentro do risquinho.

E assim ficamos conversando sobre a escola.

A Talita revelou a capacidade de perceber a importância de a escola ter uma boa atmosfera de trabalho (“não podia faltar o sorriso”), de cuidar da dimensão afetiva, do acolhimento. Além disso, tinha análise da questão da arquitetura da escola, da organização do espaço.

Envolver as crianças, respeitando o grau de desenvolvimento humano de cada faixa etária, pode contribuir muito para o exercício da cidadania desde a infância.

Conferências Lúdicas e ComVidas: uma outra forma de incentivar exercícios de cidadania entre as crianças é criar condições para elas participarem de espaços de organização e articulação de políticas públicas, como por exemplo, das Conferências Lúdicas, que fortalecem a Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente ou das Comissões de Meio Ambiente e Qualidade de Vida, que são comissões formadas por toda a comunidade escolar, visando a despertar a percepção do aluno, melhorando sua sensibilidade para identificar o que precisa ser melhorado na escola, na perspectiva socioambiental, e para tomar decisões buscando solucionar os problemas encontrados. Além disso, pode, ainda, criar condições para participar das Conferências Nacionais Infantojuvenis de Meio Ambiente.

Enfim, são muitas as possibilidades e se não é possível fazer muitas coisas, façamos o que é possível em cada contexto e, aos poucos, vamos contribuindo para construir a educação que forma para e pela cidadania.

JP – Qual a importância de se estimular a cidadania entre os estudantes? Existe uma idade mínima para isso?

AA – Para a Escola Cidadã, o conhecimento se esvazia de sentido, do ponto de vista da democracia, se não contribuir para formar pessoas que ajam de forma solidária, cooperativa, dialógica, respeitosa, comprometida com a vida coletiva, de forma a promover a justiça social e o bem-viver para todos e todas.

Paulo Freire definiu uma educação para e pela cidadania quando, nos Arquivos Paulo Freire, em São Paulo, dia 19 de março de 1997, numa entrevista à TV Educativa do Rio de Janeiro, falou de sua concepção da “escola cidadã”: “A Escola Cidadã é aquela que se assume como um centro de direitos e de deveres. O que a caracteriza é a formação para a cidadania. A Escola Cidadã, então, é a escola que viabiliza a cidadania de quem está nela e de quem vem a ela. Ela não pode ser uma escola cidadã em si e para si. Ela é cidadã na medida mesma em que se exercita na construção da cidadania de quem usa o seu espaço. A Escola Cidadã é uma escola coerente com a liberdade. É coerente com o seu discurso formador, libertador. É toda escola que, brigando para ser ela mesma, luta para que os educandos-educadores também sejam eles mesmos. E como ninguém pode ser só, a Escola Cidadã é uma escola de comunidade, de companheirismo. É uma escola de produção comum do saber e da liberdade. É uma escola que vive a experiência tensa da democracia”.

Penso que o relato que fiz da conversa com a Talita é um bom exemplo que nos autoriza a afirmar que não existe uma idade para o exercício da cidadania. O que não significa que vamos construir cidadania com as crianças a partir de conteúdos e metodologias utilizadas com a formação de adultos. Não é possível fazer uma mera transposição das práticas pedagógicas dos adultos para as crianças. É fundamental respeitar o grau de desenvolvimento humano e criar condições pedagógicas de participação das crianças.

JP – As escolas brasileiras têm contribuído para desenvolver a cidadania entre os estudantes? E esse papel está sendo exercido pela escola entre os pais e a comunidade?

AA – Infelizmente, ainda não podemos afirmar que o exercício da cidadania desde a infância é uma prática vivida nas escolas brasileiras. Conforme afirma Marilena Chauí, a sociedade brasileira é vertical, violenta e oligárquica. A violência que assola o cotidiano da população não é um surto passageiro, ela responde às realidades de um Brasil que se estruturou por meio de relações de tutela e de favor. A política ainda apresenta traços medievais; vem de cima para baixo. As oligarquias ainda possuem grande força como representantes políticos de expressiva parte da população em nosso país. Para que a esfera pública passe a constituir-se como pública e para que sejam fundados os pilares de uma sociedade democrática, não podemos prescindir da garantia dos direitos humanos e da eliminação dos privilégios. É na prática da política democrática que se instaura a esfera pública e a cultura do bem comum. No que diz respeito à atuação com crianças e adolescentes, é essencial apreender o conjunto de valores e princípios preconizados pela Constituição Federal, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA e pelo Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Esses marcos legais nos provocam a olhar a realidade sob o foco de outras lentes, a acessar outras formas e conteúdos e a construir novas possibilidades de exercício da cidadania desde a infância.

Ainda falta muito para as escolas brasileiras fortalecerem a cidadania entre os estudantes, mas acho que podemos dizer que estamos, aos poucos, avançando com as experiências. Muitos governos municipais do campo democrático-popular vêm adotando em suas políticas educacionais a participação das crianças, adolescentes e jovens: em São Paulo, no período de 2000-2004, foi implantado o Orçamento Participativo Criança, que envolveu formação semanal para mais de 10.200 crianças, para participarem da definição de prioridades para a educação e para a cidade no Orçamento Participativo da cidade. Muitas outras experiências vêm ganhando expressão nas políticas públicas, como, por exemplo, as já citadas Conferências Lúdicas e as ComVidas.

JP – Como a escola pode educar para a cidadania? Quais os aspectos da cidadania mais importantes para serem desenvolvidos na escola?

AA – Para a maioria das crianças, é a escola que marca o início da sua atuação pública. É na escola que muitas delas vivenciam o primeiro encontro com a sociedade e têm a oportunidade de, por meio da participação, começar a construir sua autonomia e a exercer sua cidadania. É aí que elas se deparam com o público, com o início da construção do significado do que é “coletivo”. O significado de público começa a se definir. Elas compartilham tempos, espaços e objetos. Na hora da entrada e saída da escola, na sala de aula, no recreio, no uso dos brinquedos, da lousa, do giz, do material escolar... elas começam a perceber a convivência em grupo. Elas começam a interagir com bens coletivos e públicos e com linguagens coletivas. A escola e o contexto social em que estão inseridas não podem se eximir da responsabilidade de construção de valores, respeito e responsabilidade frente aos espaços públicos e frente às relações democráticas de convivência, fundamentada na resolução de conflitos por meio do diálogo, na cultura da paz e da sustentabilidade. Isso exige aprendizado. A paz se constroi. A solidariedade, o respeito, o saber escutar, avaliar e decidir implicam processos pedagógicos. Não se estabelecerá entre nós se não agirmos em sua direção. É preciso que a escola se prepare para criar condições de exercício da cidadania desde a infância.

JP – Qual sua opinião sobre a realização, na escola, de campanhas e outras atividades visando ações de cidadania?

AA – Sou absolutamente favorável. A filosofia da educação de Paulo Freire nos inspira a perceber as crianças e adolescentes como sujeitos dos direitos e, portanto, a assegurar sua participação e opinião no processo de construção coletiva das regras na família, na escola e nos grupos sociais que freqüentam. Paulo Freire, a concepção de educação cidadã reconhece a educação como um ato político, o que pressupõe posicionamento crítico diante das relações de poder e de dominação, a relação dialógica entre educador(a) e educando(a), a problematização da realidade, a participação democrática e ativa, o conhecimento que concebe a história do educando(a) como parte constitutiva do currículo e a transformação dos sujeitos, considerando que, no processo de ensino-aprendizagem, todos tomam parte e nessa relação lêem o mundo, formulam compreensões sobre a realidade, com vistas à sua transformação. É fundamental que as visões de mundo, as expressões, as ações e os projetos de vida das crianças não sejam silenciados por uma sociedade que, tradicionalmente, só reconhece o espaço dos adultos.

Educar na, para e pela democracia implica criar espaços de decisão e de vivência de princípios éticos, de solidariedade, de justiça, de diálogo. Como buscar o envolvimento das crianças, adolescentes e jovens para além do “fazer parte”? Como “tomar parte” nas decisões? A escola precisa se organizar nesse sentido; a oferecer oportunidades de aprender a decidir coletivamente, a vivenciar e a experimentar a validade do diálogo crítico como mediador dos conflitos, a construir, em grupo, acordos temporários ou mais duradouros, a lidar com a diferença e a divergência, ensinando a criança a se manifestar com respeito e justiça.

A escola é um espaço privilegiado dessa construção. E essa tarefa é de todos e todas que dela fazem parte. Não ensina apenas o professor. A merendeira ensina e aprende. O inspetor de alunos ensina e aprende. O pessoal que fica na secretaria da escola recebendo e expedindo documentos ensina. Ensinamos e aprendemos em todos os espaços da escola, não só na sala de aula. É preciso que todos assumam essa tarefa educativa essencial. É necessário que tenhamos clareza de que democracia, cidadania, autonomia, participação, solidariedade exigem aprendizado. E aprendemos, principalmente, praticando, vivenciando. Não basta que a escola pronuncie um discurso emancipador. É preciso que ela vivencie o que defende. Nossas palavras devem ser corporeificadas pelo exemplo. Nossa prática não pode ser negadora do nosso discurso (FREIRE, 1997). Se a escola se propõe a formar cidadãos críticos, propositivos, democráticos, participativos, ela deve criar condições para a vivência desses princípios desde a infância. Paulo Freire afirmava “Tudo o que a gente puder fazer no sentido de convocar os que vivem em torno da escola, e dentro da escola, no sentido de participarem, de tomarem um pouco o destino da escola na mão, deve ser feito. Tudo o que a gente puder fazer nesse sentido é pouco ainda, considerando o trabalho imenso que se põe diante de nós que é o de assumir esse país democraticamente”. Aceitemos o convite de Paulo Freire e não nos furtemos a essa imensa e gratificante tarefa. Afinal, somos educadores, “profissionais do sentido da vida” e continuamos sonhando com “um outro mundo possível”. Temos uma escola em nossas mãos. Saibamos construí-la com democracia, para e pela paz, visando a um mundo sustentável, com justiça social e vida digna para todos e todas. Saibamos construí-la desde a infância. Não deixemos de ser “doidos pra ver o nosso sonho teimoso, um dia se realizar!!!”

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