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JORNAL
Edição 45 - Educação Étnico-racial
20/10/2010
 
ou

Wilma de Nazaré Baía Coelho: lei pode ajudar a superar o racismo

Wilma de Nazaré Baía Coelho é professora da UFPA e da Unama.

Wilma de Nazaré Baía Coelho é professora da UFPA e da Unama.

Autor:Arquivo pessoal


Professora da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade da Amazônia (Unama), Wilma de Nazaré Baía Coelho coordena a linha de pesquisa Formação de Professores e Currículo, no Programa de Pós-graduação em Educação da UFPA.

Membro da Associação Brasileira dos Pesquisadores Negros (ABPN), ela coordena, também, o Núcleo de Formação de Professores e Relações Étnico-raciais (Gera/UFPA e Gepre/Unama) e o Curso de Especialização em Relações Étnico-raciais para o Ensino Fundamental/Uniafro. Pedagoga, com mestrado em Gestão e Ensino Superior e doutorado em Educação, sua atuação, na área de educação básica e superior, tem ênfase, principalmente, na formação de professores, diversidade étnico-racial, relações raciais, diversidade cultural e representação social.

Em entrevista ao Jornal do Professor, Wilma Coelho afirma que a Lei nº 11.645 tem importância fundamental para a educação, pois dá visibilidade e tira de segundo plano a questão do preconceito e da discriminação. Em sua opinião, as escolas brasileiras reproduzem o racismo que há na sociedade, tanto de forma velada quanto explícita, produzindo prejuízos enormes. Para modificar essa situação, sugere algumas medidas que incluem a capacitação dos professores, a reformulação do currículo, além de discussões sobre o tema para a formulação de alternativas. “Há que se desvincular o conteúdo relativo à África, à cultura afro-brasileira e às populações indígenas do exótico e torná-lo um conteúdo tão relevante quanto aquele relativo à história europeia”, defende.

Jornal do Professor - O povo brasileiro, de maneira geral, acredita que não existe racismo no Brasil. Qual sua opinião sobre isso?

Wilma de Nazaré Baía Coelho – Infelizmente, a escola é, em parte, bastante responsável por essa situação. Nas pesquisas realizadas pelo núcleo que coordeno (Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Formação de Professores e Relações Étnico-raciais/GERA), percebe-se que os professores reproduzem muitas práticas discriminatórias ou racistas. Muitos assumem o mito de formação da sociedade brasileira, aquele no qual o branco aparece como elemento civilizador, o negro com o trabalho e o indígena com a alegria, como verdade. A falta de reflexão sobre a questão faz com que os professores não atentem para o conteúdo racista de diversas práticas, como a seleção da “menina mais bonita”; a referência à cor, quando se trata de alunos negros ou pardos; o uso de ressalvas compensatórias para a referência à cor etc. As recentes políticas afirmativas são benéficas porque incluem a questão nos processos de capacitação dos professores em exercício e nos processos de formação inicial dos professores.

JP – Há racismo nas escolas brasileiras? De que forma ele se manifesta? Quais os prejuízos que pode acarretar?

WNBC – Há. Lamentavelmente não poderia ser diferente. A escola não é um organismo estranho à sociedade. Ela reproduz, em larga medida, aquilo que a sociedade elege como padrão. O racismo presente na escola se manifesta da mesma forma que se manifesta na sociedade: na maior parte dos casos de forma velada – na reiteração dos padrões de beleza, no estabelecimento de vínculos afetivos e no uso de epítetos que se querem carinhosos e integradores (“Pelé, meu negão” etc.); mas ocorre também de forma explícita – nas formas de representação do negro e do índio nos livros didáticos, na eleição dos conteúdos relacionados à memória histórica brasileira, no lugar dispensado às populações afro-brasileiras e indígenas na construção da sociedade nacional, especialmente após a Independência.

Os prejuízos da manutenção do racismo nas escolas são enormes: em primeiro lugar ele exclui todos aqueles que não se enquadram no padrão “branco”; em segundo lugar, ele prejudica a compreensão e a internalização de valores da cidadania para a parcela discriminada, porque acaba por relegar aos não “brancos” a condição de atores de segunda categoria, com participação coadjuvante nos processos históricos que formaram a sociedade brasileira e com participação subalterna na sociedade atual.

Por fim, para concluir a resposta (mas, infelizmente, poderíamos traçar aqui um imenso rol de atrocidades), o racismo institui uma rotina de violências – que nem sempre descambam para a agressão física, mas não são menos nocivas por serem verbais – que apequenam, fazem sofrer, tornam mais dolorosos os processos de constituição da pessoa, da personalidade, da autonomia, prejudicando a conformação da auto-estima e da auto-confiança, valores essenciais ao homem.

JP – O que fazer para modificar a situação de racismo nas escolas? A senhora acredita que discutir o tema pode ajudar a reduzir o racismo?

WNBC – Em primeiro lugar, não se pode esquecer que o racismo não é uma condição inata. Essa consideração, formulada por mais de uma figura importantíssima na constituição da sociedade ocidental, é fundamental para que se possa projetar a erradicação do racismo. Discutir o tema é importante, mas não pode ser a única estratégia e nem a mais importante, se a discussão servir apenas para momentos de catarse, no qual os atingidos pela discriminação manifestam sua indignação. Não estou recusando a importância da catarse, mas afirmando que temos de seguir em frente para construir algo positivo. Nesse sentido, a discussão deve atentar, especialmente, para a formulação de alternativas. Capacitar o professor para perceber o racismo e para combatê-lo me parece imperativo. Reformular o currículo também é importante. Chega a ser contraditório afirmar que somos um país multicultural e diverso e manter um currículo marcadamente eurocêntrico. Há que se desvincular o conteúdo relativo à África, à cultura afro-brasileira e às populações indígenas do exótico e torná-lo um conteúdo tão relevante quanto aquele relativo à história europeia.

JP – O que fazer quando o próprio professor tem preconceito?

WNBC – Essa reprodução, que destaco aqui, tem duas razões: em primeiro lugar, porque a instituição é formada por agentes sociais que, a despeito dos habitus* diversos, contribuem para a reprodução das estruturas da cultura dominante, no que tange à questão racial; em segundo lugar, por que a instituição se omite de cumprir a sua função de fazer emergir um novo habitus, profissional, no qual o preconceito, o racismo e a segregação não se manifestem – ainda que persistam na convicção de cada um dos agentes. Os desdobramentos de tais processos resultam, na criança, a constituição de uma visão negativa de si mesma, especialmente quando os professores são os próprios agentes da discriminação. Deveremos então, enfrentá-los ampliando o debate acerca da temática e consolidando políticas de formação continuada nos espaços educativos.

JP – Qual é a importância da Lei nº 11.645 para a educação?

WNBC – Fundamental, para dizer tudo. Ela estabelece para professores, intelectuais, universidades, cursos de formação de professores e escolas de educação básica a necessidade de enfrentar a questão. Ainda que tenha suscitado incompreensões, ela introduz a necessidade da discussão e permite a emergência de formulações de toda ordem – o que, por extensão, permite que a escola, a universidade, enfim, e os intelectuais se confrontem com as próprias posições sobre o assunto. Até onde percebo, a lei levanta a necessidade de tomar posição e isso é essencial nessa questão – ela dá visibilidade, tira do segundo plano a questão do preconceito e da discriminação.

Acredito que ainda existem lacunas a serem preenchidas. Mesmo assim, é uma das formas concretas de se discutir o problema, sendo um dos caminhos para se debater questões como as cotas para as chamadas minorias nas universidades públicas. A legislação que trata da introdução da temática cultural afro-brasileira, africana e indígena na educação básica e na formação de professores não aponta para a criação de uma disciplina específica nos currículos. A temática tem de ser trabalhada na matriz curricular da educação básica e dos cursos superiores, fazendo parte das disciplinas como um todo. Portanto, dentro dessas áreas, há as disciplinas que as comportam. O que se pretende é discutir a temática no “corpo documental” da escola, de forma enraizada – de modo que a escola estabeleça interlocução com os agentes escolares, com a comunidade e com movimentos sociais. O fortalecimento dessa discussão dar-se-á também a partir dessas parcerias e compreensão de divisão de responsabilidades entre os diversos setores sociais.

JP – Os professores estão preparados para dar aulas sobre a temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena? Como prepará-los?

WNBC – Nas pesquisas do Núcleo-Gera, na Região Norte, observa-se não somente as práticas em execução, assim como seus documentos (regimentos, projetos pedagógicos e projetos escolares), professores, alunos e a relação deles com o entorno. Embora os gestores das escolas que pesquisamos informem sobre a existência de práticas sistemáticas na maioria das escolas, constatou-se que havia um descompasso entre informações e realidade. Nestas, observamos a ocorrência de ações mais pontuais que sistematizadas. Constatou-se que, de certo modo, há um número diminuto de escolas que apresentaram práticas mais sistematizadas em relação à discussão étnico-racial em seus documentos. Nelas, as aulas com enfoque sobre a cultura afro-brasileira e africana são ministradas por professores negros e autodeclarados brancos. Mas os pesquisadores perceberam que as práticas mais sistematizadas ou mais enraizadas são desenvolvidas por professores negros. Os cursos de formação de professores não têm atentado, como deveriam, para o lugar crucial da questão étnico-racial, não apenas na formação da identidade, mas na construção da autoestima e, consequentemente, no desempenho escolar do aluno. Se ele não se reconhece como igual ao padrão aceito e legitimado pela sociedade, não se esforça para apreender um conhecimento que não apenas não o reconhece, mas o exclui. Além disso, as teorias pedagógicas em voga nas disciplinas e teses formuladas nos cursos de formação de professores não são utilizadas para se pensar a questão étnico-racial e se problematizar o quanto essa questão serve para a reflexão sobre a escola como um lugar de reprodução do preconceito. Da mesma forma, esse aparato não é utilizado para se pensar o ensino formal como um caminho para sua superação.

* Habitus – De acordo com a Wikipédia, o conceito de habitus foi desenvolvido pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu com o objetivo de por fim à antinomia indivíduo/sociedade dentro da sociologia estruturalista. Relaciona-se à capacidade de uma determinada estrutura social ser incorporada pelos agentes por meio de disposições para sentir, pensar e agir.

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