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Estudo do conto: A CAUSA SECRETA de Machado de Assis

 

21/01/2010

Autor e Coautor(es)
WALLESKA BERNARDINO SILVA
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UBERLANDIA - MG ESC DE EDUCACAO BASICA

Eliana Dias

Estrutura Curricular
Modalidade / Nível de Ensino Componente Curricular Tema
Ensino Médio Literatura Literatura brasileira, clássica e contemporânea: criações poéticas, dramáticas e ficcionais da cultura letrada
Dados da Aula
O que o aluno poderá aprender com esta aula

 Refletir sobre aspectos importantes do comportamento humano e da vida em sociedade.
 Dialogar livremente sobre um texto literário.
 Desafiar sensibilidade e inteligência, enriquecendo-se com a leitura.
 Desenvolver a capacidade de raciocínio, argumentação e sensibilidade para a compreensão das múltiplas facetas da realidade.
 Rever a estrutura do conto e a diferença entre resumo e análise literária.

Duração das atividades
04 aulas de 50 minutos cada
Conhecimentos prévios trabalhados pelo professor com o aluno

 Reconhecimento das características principais do conto;
 ter lido outros contos mais simples;
 conhecer algumas características de Machado de Assis, do Realismo e os temas dos contos dessa estética literária.

Estratégias e recursos da aula

                   

- Leituras, exercícios em grupo.
- Utilização do laboratório de informática.

AULAS 1 e 2

Atividade 1

O professor deverá, como motivação, colocar os alunos em círculo e fazer perguntas na tentativa de fazê-los falar o que sabem sobre Machado de Assis, que foi o maior escritor do Brasil e um mestre da língua portuguesa.

  • Dizer que o texto que vão ler é um texto longo, complexo, e portanto, a compreensão será um desafio para cada um dos leitores.
  • Recordar o que é uma história não-linear, isto é, aquela que não segue a ordem: começo, meio e fim.

Atividade 2

Em seguida, na sala de Informática, o professor deverá perguntar se alguém conhece o significado das palavras sádico, sadismo. Deverão utilizar o dicionário e discutir o assunto para depois lerem o texto disponível no site:


http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/causa.html

A CAUSA SECRETA

Machado de Assis

         GARCIA, EM PÉ, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, — de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço.
         Tinham falado também de outra cousa, além daquelas três, cousa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-lo entender é preciso remontar à origem da situação.
Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manoel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele.
          A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo beco do Cotovelo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No largo da Carioca entrou num tí l buri, e seguiu par a os lados da praça da Constituição. Garc ia voltou para casa se m saber mais nada .
         Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do a rsenal de guerra. Era este que alguns homens conduziam, escada acima, ensanguentado. O preto que o servia acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um médico.
         — Já aí vem um, acudiu alguém.
         Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Ima ginou que seria parente ou amigo do ferido; mas rejeitou a suposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele assumiu a direção do serviço, pediu às pessoas estranhas que se retirassem, pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens. Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em seguida contou o que se passara.
          — Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento. Parece que eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal. Não caiu logo; disse onde morava e, como era a dois passos, achei melhor trazê-lo.
         — Conhecia-o antes? perguntou Garcia.
         — Não, nunca o vi. Quem é? 
         — É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouvêa.
         — Não sei quem é.
          Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador em Catumbi. A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente com o médico, acompanhou-o até o patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dois saíram, ele e o estudante ficaram no quarto.
Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranquilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios.
         Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do nome, rua e número. 
&n bsp;   & nbsp;  &nbs p;  — Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, log o que possa sair, disse o convalescente.
        Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho. Go uvea, defr onte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença para sair, e saiu.
         — Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se.
        O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar à cabeça e refugiar-se ali como uma simples ideia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão.
         Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, q ue dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. Picado de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera dele o oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achou nenhum.
Tempos depois, estando já formado e morando na rua de Matacavalos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a frequência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi.
          — Sabe que estou casado?
          — Não sabia.
          — Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo.
          — Domingo? 
          — Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo.
          Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora, que era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco. Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. Um dia, estando os três juntos, perguntou Garcia a Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o marido.
          — Não, respondeu a moça.
          — Vai ouvir uma ação bonita.
          — Não vale a pena, interrompeu Fortunato.
          — A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico.
         Contou o caso da rua de D. Manoel. A moça ouviu -o espantada. Insensivelment e estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acab asse de descobrir-lhe o coração. Fortunat o sacudia os ombros, mas não ouvia com indiferença. No fim contou ele próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o ris o da dobrez . A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco.
" Singular homem!" pensou Garcia.
          Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico restituiu-lhe a satisfação anterior, voltando a referir à dedicação deste e as suas raras qualidades de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo. 
         — Valeu? perguntou Fortunato.
         — Valeu o quê? 
         — Vamos fundar uma casa de saúde?
         — Não valeu nada; estou brincando.
         — Podia-se fazer alguma cousa; e para o senhor, que começa a clínica, acho que seria bem bom. Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve.
        Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a ideia tinha-se metido na cabeça ao outro, e não foi possível recuar mais. Na verdade, era uma boa estréia para ele, e podia vir a ser um bom negócio para ambos. Aceitou finalmente, daí a dias, e foi uma desilusão para Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a ideia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi ele o próprio administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas.
       Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua D. Manoel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto p ara tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos.
       — Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele.
       A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; ali jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada.
       No começo de outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico a situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os ver sofrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como cousa sua, alcançasse do marido a cessaçã o de tais experiências.
         — Mas a senhora mesma... 
        Maria Luísa acudiu, sorrindo:
        — Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz...
       Garcia alcançou pro ntamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada.
       — Deixe ver o pulso.
       — Não tenho nada. 
        Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo.
        Dois dias depois, — exatamente o dia em que os vemos agora, — Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía aflita.
        — Que é? perguntou-lhe.
        — O rato! O rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se.
        Garcia lembrou-se que na véspera ouvira ao Fortunado queixar-se de um rato, que lhe levara um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado.
        — Mate-o logo! disse-lhe.
        — Já vai.
        E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensanguentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida.
        Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda ess a mistura de chamusco e sangu e. 
  & nbsp;      Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Ent ão, mostrou-se enrai vecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida.
         "Castiga sem raiva", pensou o médico, "pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia l he pode dar: é o segredo deste homem".
Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula.
          Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente:
          — Fracalhona!
          E voltando-se para o médico:
          — Há de crer que quase desmaiou?
          Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar.
Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal. 
         Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só.
         De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repousasse um pouco.
          — Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois.
Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado.
Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chego u à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizad e, pod ia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não d eu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento. Olhou assombrado, mordendo os beiços.
         Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; m as então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.

Após a leitura do texto, o professor perguntará a alguns alunos suas impressões sobre o conto. Gostram? Não gostaram? Por quê?
 

Importante: Professor, lembre aos alunos que a visão que um leitor tem diante de um texto pode divergir de outras leituras.

 

Aula 3

Atividade 

Em seguida, colocar os alunos em pequenos grupos para que discutam e respondam por escrito as seguintes questões:

1- Machado possibilita, ao longo do conto, por meio das ações de Fortunato, que o leitor vá compondo o perfil moral de Fortunato e possa perceber as características principais da personalidade desse personagem. Indiquem quais as características marcantes da personalidade dele. Comprovem com fragmento do texto.


2- Pode-se afirmar que o autor desenvolve, nesse conto, o tema: aparência não é essência do comportamento humano? Expliquem.

 
3- Uma característica marcante desse conto é a tensão permanente que ambienta cada episódio. Retirem fragmentos que comprovem essa afirmação.


4- A simpatia que Garcia tem por Fortunato é exatamente por causa de seu estranho comportamento ao velar, por dias, um pobre coitado que sequer conhece. Comentem a afirmativa.


5- O clímax (momento de maior tensão) se dá quando Maria Luiza e Garcia flagram Fortunato torturando um pequeno rato, cortando-lhe pata por pata com uma tesoura e levando-lhe ao fogo, sem deixar que morresse. É assim que se percebe a causa secreta dos atos daquele homem: o sofrimento alheio lhe é prazeroso. Comprovem essa afirmativa com outros fragmentos que demonstrem seu prazer na dor.

 
6- Os nossos jornais todos os dias trazem muitas notícias de tragédias, e os editores justificam a exploração desse tema explicando que o ser humano gosta de ver sofrimento alheio. Vocês concordam com essa explicação? Vocês gostam de ler sobre isso? Podemos chamar a isso de sadismo?


7- Dizem que os temas explorados pela música sertaneja são principalmente traição e amor não correspondido. Tragam para a sala exemplos de músicas que explorem o gosto pelo auto-sofrimento como vimos em Fortunato na última frase do texto Causa secreta.

Aula 4

Atividade

Produção de texto

O professor deverá propor que individualmente os alunos escrevam um texto dissertativo respondendo à pergunta:

  • Você considera que o sadismo é inerente ao ser humano? Explique.
Avaliação


Para a avaliação das atividades, o professor deve verificar se os objetivos das aulas foram alcançados. Isso poderá ser feito com base nas observações feitas durante o desenvolvimento das atividades, o interesse e a participação dos alunos. Na atividade escrita, o professor deverá centrar sua atenção na resposta do aluno à pergunta, uma vez que ele tem que se posicionar a respeito.

Opinião de quem acessou

Quatro estrelas 3 classificações

  • Cinco estrelas 1/3 - 33.33%
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Opiniões

  • MILENA RAMOS, eme alcina dantas feijao , São Paulo - disse:
    emilenar@uol.com.br

    18/08/2015

    Quatro estrelas

    muito oportuna as atividades, adorei. Parabens.


  • Ivanir Bernardi Gnoatto, CEEBJA FRANCISCO BELTRAO E FUND MEDIO , Paraná - disse:
    ivanir@seed.pr.gov.pr

    23/09/2010

    Cinco estrelas

    A literatura brasileira é fascinante. Poder falar para os alunos e levá-los a pensar sobre as grandes obras literárias, e fazer com que leiam um pouco gratifica o professor ledor. Além de adquirir conhecimento os educandos navegam pela historia como personagens do livro. Isso é muito bom. Parabéns pela sua aula. Prof. Ivanir


  • manuella, instituto de sabedoria e ensino-ise , Piauí - disse:
    manuellaraimunda@hotmail.com

    15/04/2010

    Quatro estrelas

    gostei muito da aula.foi ótima!!!!!!!!!!!!!!! você é um otimo professor!!!!!!!!!! parabéns!!!!!!!!!!!!!!!!!


Sem classificação.
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