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O Pós-Modernismo

 

14/01/2011

Autor e Coautor(es)
MARTA PONTES PINTO
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UBERLANDIA - MG ESC DE EDUCACAO BASICA

Eliana Dias

Estrutura Curricular
Modalidade / Nível de Ensino Componente Curricular Tema
Ensino Médio Literatura Literatura brasileira, clássica e contemporânea: criações poéticas, dramáticas e ficcionais da cultura letrada
Ensino Médio Literatura Estudos literários: análise e reflexão
Dados da Aula
O que o aluno poderá aprender com esta aula
  • Conhecer Guimarães Rosa e sua linguagem;
  • descobrir o mundo interior de Clarice Lispector;
  • observar a depuração da forma na obra de João Cabral de Melo Neto;          
  • observar a abordagem de filmes sobre os temas pós-modernos.
Duração das atividades
06 aulas de 50 minutos
Conhecimentos prévios trabalhados pelo professor com o aluno
  • A literatura e sua preocupação com a linguagem.
  • A literatura como meio utilizado para denúncias sociais e propostas de reflexão.
Estratégias e recursos da aula
  • Utilização do laboratório de informática ou sala de vídeo;
  • atividades realizadas em grupos de três ou duplas de alunos;
  • discussão envolvendo a turma em um único grupo.

Desta série de aulas constam sugestões de filmes, leituras de livros e vídeos no youtube.

  • Professor, embora você possa usar as três propostas, deixo a sugestão de uso  diversificado a cada aula.

Cartazes dos filmes sugeridos disponíveis em:

http://filmow.com/filme/12240/morte-e-vida-severina/

http://www.adorocinema.com/filmes/a-hora-da-estrela/ 

http://filmow.com/filme/17584/noites-do-sertao/   

  • Interdisciplinaridade: Professor, convide um professor de Geografia ou História para compartilhar dessa atividade.

Proposta de estudo de três grandes autores e obras Pós-Modernistas: João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector, João Guimarães Rosa

Atividade 1

SOBRE João Cabral de Melo Neto

I- Professor, faça a locação do filme e leve os alunos à sala de vídeo para assistirem  a "Morte e Vida Severina", adaptação da obra de João Cabral de Melo Neto. Filme produzido em 1982, com direção de Walter Avancini. Em uma única fita, estão dois especiais produzidos pela Rede Globo: Morte e Vida Severina/ Quincas Berro D'Água. Embora sejam dois filmes muito interessantes, recomenda-se trabalhá-los em diferentes momentos. Para orientar o trabalho, o professor deverá entregar aos alunos xerox da sinopse do filme e roteiro e ler em voz alta com eles, chamando a atenção para o fato de a obra ser um poema narrativo numa linguagem popular.

Sinopse:

Morte e Vida Severina é um auto (poema narrativo para ser representado. Faz parte da tradição medieval, apresenta forte religiosidade e é expresso em linguagem popular). É uma peça literária perfeita uma vez que João Cabral de Melo Neto soube, de forma harmoniosa, juntar os elementos: forma, conteúdo e linguagem na exposição da injusta distribuição de riquezas no Brasil, das origens da questão agrária, da força dos coronéis. Em versos curtos e rimados, a obra (original e adaptação) mostra a viagem do retirante Severino que atravessa o sertão, o agreste, a Zona da Mata em busca de terras que lhe fossem mais amenas. Essa fita é uma adaptação do livro para televisão. A música é de Chico Buarque de Holanda.

II- Professor, atenção! Se for difícil encontrar o filme nas locadoras de sua cidade, adote a leitura do livro que é muito, muito interessante. Disponível em:

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua00129a.pdf

III- Porém, há ainda outra opção que é exibir os vídeos  relacionados abaixo.

http://www.youtube.com/watch?v=_tM1dByXVxY&feature=related

http://www.youtube.com/watch?v=xAtbeDyH9P8&feature=related 

http://www.youtube.com/watch?v=O6Mu71NzZg8&feature=related   

Roteiro de acompanhamento do livro / vídeo - youtube / filme: 

Após assistir ao filme ou ler o livro, o professor deverá solicitar ao estudante que faça o exercício em grupo de dois ou mais alunos. Entregar cópia da atividade xerocada a cada aluno.

 1- Como o personagem explica a origem de seu nome?

2- Há, no texto, um jogo entre o substantivo Severino e o adjetivo severina. Como pode ser explicado?

3- "Somos muitos Severinos / iguais em tudo e na sina". Qual é a "sina severina"?

4- Em relação ao episódio da morte do lavrador expliquem:

a- Qual a causa mortis?

b- O que é uma "ave bala"?

5- Severino diz "... trabalhar / todas as horas do dia, / os dias todos do mês, / os meses todos da vida." O que a ideia lhes transmite: dinamismo? desenvolvimento? escravidão? Justifiquem.

6- O filme mostra conflitos sociais típicos do Nordeste. Levantem cinco dos problemas. 

7- Ao chegar ao Recife, Severino conclui que sua caminhada fôra em vão, pois depara-se com a morte.

a- Que episódio deixa clara a sua vontade de se matar?

b- Por que não o faz?

8- João Cabral de Melo Neto, ao criar o personagem José e lhe dar esse nome faz uma referência bíblica. Explique a seguinte fala de mestre José:

—  Severino, retirante, / deixe agora que lhe diga: / eu não sei bem a resposta / da pergunta que fazia, / se não vale mais saltar / fora da ponte e da vida / nem conheço essa resposta, / se quer mesmo que lhe diga / é difícil defender, / só com palavras, a vida, / ainda mais quando ela é / esta que vê, severina / mas se responder não pude / à pergunta que fazia, / ela, a vida, a respondeu / com sua presença viva./ E não há melhor resposta / que o espetáculo da vida: / vê-la desfiar seu fio, / que também se chama vida, / ver a fábrica que ela mesma, / teimosamente, se fabrica, / vê-la brotar como há pouco / em nova vida explodida / mesmo quando é assim pequena / a explosão, como a ocorrida / como a de há pouco, franzina / mesmo quando é a explosão / de uma vida severina.

9- Em relação à fala de Severino na questão de número 5, respondam: a vida de vocês tem sido igual ou diferente da que leva o personagem? Expliquem.

  • Professor, para correção e discussão do exercício, coloque a turma em círculo e aproveite para, juntamente com o professor convidado, fazer explorações mais profundas sobre o tema.

Atividade 2

Lembrete: Desta série de aulas constam sugestões de filmes, leituras e vídeos no youtube.

REPETINDO: professor, embora você possa usar as três propostas, deixo a sugestão de uso diversificado a cada aula

SOBRE Clarice Lispector

I- Faça a locação do filme e leve os alunos à sala de vídeo para assistirem  "A hora da Estrela " baseado na obra de Clarice Lispector. (1985, cor, 96 minutos, drama); Formato de exibição: 35mm; Classificação indicativa: 14 anos; Produção: Raiz Produções Cinematográficas; Direção: Suzana Amaral

Elenco: José Dumont (Olímpico de Jesus), Marcélia Cartaxo, Tamara Taxman, Fernanda Montenegro, Manoel Luiz Aranha, Denoy de Oliveira e Marli Botoletto

Sinopse: Macabéa, uma imigrante nordestina em São Paulo, divide o seu tempo entre a pensão miserável onde mora, o trabalho como datilógrafa numa pequena firma e o namoro casto e desajeitado com o metalúrgico Olímpico de Jesus que dela se aproxima somente por serem da mesma região. Ele, porém, tem ambição de fugir das origens.   

II- Professor, apresento abaixo endereço de cinco vídeos que apresentam uma interessante versão do texto "A Hora da Estrela". Além de apresentarem o texto, a atriz Regina Casé brinca com o processo de criação. Sugestões de vídeos disponíveis em:

http://www.youtube.com/watch?v=O8Abw_Cm6HE  

http://www.youtube.com/watch?v=dUKCrQhcfD4  

http://www.youtube.com/watch?v=gK1gxpWssqM  

http://www.youtube.com/watch?v=apVKJolaxEs  

http://www.youtube.com/watch?v=AiTsRbVPVsA  

 

Roteiro para acompanhamento do vídeo  no  youtube, do filme ou da  leitura do livro:

  • Professor, para agilizar a atividade, xeroque o roteiro abaixo para os alunos. Peça que respondam as questões em duplas. Cada dupla deverá apresentar sua respostas para a turma.

1- Que análise psicológica pode ser feita dos personagens principais?

2- Macabéa jamais disse frases completas, em primeiro lugar, por ser de parca palavra. Não tinha consciência de si e não reclamava de nada, até pensava que era feliz. Não se tratava de uma idiota, mas tinha a felicidade pura dos idiotas. E também não prestava atenção em si mesma. Ao reproduzir falas da personagem, o narrador omite, várias vezes, sinais de pontuação. Por que isso acontece?

3- Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua, pois sua vida já estava mudada. Assim como havia sentença de morte, a cartomante lhe decretara sentença de vida. Qual a importância da cartomante na história de Macabéa?

4- Macabéa é a anti-heroína, cuja história tem o valor questionado pelo próprio narrador. Explique o que se deve entender por isso.

5- Opinião crítica sobre o texto ( interessante / desinteressante, bem / mal-urdido, defeitos / qualidades). Justificativas.

6- Análise crítica do autor. O grupo gostaria de ler outros textos da autora? Por quê?

 

Na sequência, o professor deverá fazer a correção oral, cobrando dos alunos uma participação ativa nas respostas.  Poderá, ao final, recolher os cadernos para darem uma olhada se os alunos realmente fizeram e corrigiram a atividade.

III- O professor deverá sugerir a eles que leiam o fragmento do texto abaixo para leitura e análise.

  • Professor, se a biblioteca de sua escola e os alunos não tiverem o livro, xeroque o fragmento para eles.

A Hora da Estrela

Clarice Lispector

O que se segue é apenas uma tentativa de reproduzir três páginas que escrevi e que a minha cozinheira, vendo-as soltas, jogou no lixo para o meu desespero - que os mortos me ajudem a suportar o quase insuportável, já que de nada me valem os vivos. Nem de longe consegui " igualar a tentativa de repetição artificial do que originalmente eu escrevi sobre o encontro com o seu futuro namorado. É com humildemente que contarei agora a história da história. Portanto se me perguntarem como foi direi: não sei, perdi o encontro.

Maio, mês das borboletas noivas flutuando em brancos véus. Sua exclamação talvez tivesse sido um prenúncio do que ia acontecer no final da tarde desse mesmo dia: no meio da chuva abundante encontrou (explosão) a primeira espécie de namorado de sua vida, o coração batendo como se ela tivesse englutido um passarinho esvoaçante e preso. O rapaz e ela se olharam por entre a chuva e se reconheceram como dois nordestinos, bichos da mesma espécie que se farejam. Ele a olhara enxugando o rosto molhado com as mãos. E a moça, bastou-lhe vê-lo para torná-lo imediatamente sua goiaba-com-queijo.

Ele se aproximou e com voz cantante de nordestino que a emocionou, perguntou-lhe:

— E se me desculpe, senhorinha, posso convidar a passear?

— Sim, respondeu atabalhoadamente com pressa antes que ele mudasse de ideia.

— E, se me permite, qual é mesmo a sua graça?

— Macabéa.— Maca — o quê?

— Bea, foi ela obrigada a completar.

— Me desculpe mas até parece doença, doença de pele.

— Eu também acho esquisito, mas minha mãe botou ele por promessa a Nossa Senhora da Boa Morte se eu vingasse, até um ano de idade eu não era chamada porque não tinha nome, eu preferia continuar a nunca ser chamada em vez de ter um nome que ninguém tem mas parece que deu certo — parou um instante retomando o fôlego perdido e acrescentou desanimada e com pudor — pois como o senhor vê eu vinguei... pois é...

— Também no sertão da Paraíba promessa é questão de grande dívida de honra. Eles não sabiam como se passeia. Andaram sob a chuva grossa e pararam diante da vitrine de uma loja de ferragem onde estavam expostos atrás do vidro canos, latas, parafusos grandes e pregos. E Macabéa, com medo de que o silêncio já significasse uma ruptura, disse ao recém-namorado:

— Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?

Da segunda vez em que se encontraram caía uma chuva fininha que ensopava os ossos. Sem nem ao menos se darem as mãos caminhavam na chuva que na cara de Macabéa parecia lágrimas escorrendo.

(LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.)

Excertos disponíveis em:

http://claricelispector.blogspot.com/2008/05/hora-da-estrela-8-parte.html

http://talqualmente.wordpress.com/2007/06/27/macabea-e-olimpio-em-ingles/  

O professor deverá entregar xerox do roteiro abaixo para análise do texto:

1- No primeiro parágrafo, o narrador conversa com o leitor sobre o ato de narrar. O primeiro parágrafo é portanto metalinguístico. Qual o estado emocional  desse narrador?

2- O narrador, ao relatar o encontro entre Macabéa e Olímpico usa a palavra "explosão" entre parênteses. Justifique o emprego da palavra e dos parênteses.

3- Macabéa é a anti-heroína, cuja história tem o valor questionado pelo próprio narrador. Como vocês classificam a personagem a partir de sua fala:

4- — Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?

Macabéa jamais disse frases completas, em primeiro lugar por ser de parca palavra. Não tinha consciência de si e não reclamava de nada, até pensava que era feliz. Não se tratava de uma idiota, mas tinha a felicidade pura dos idiotas. E também não prestava atenção em si mesma.Ao reproduzir falas da personagem o narrador omite, várias vezes, sinais de pontuação. Por que isso acontece?

5- O que se deve entender por: "E a moça, bastou-lhe vê-lo para torná-lo imediatamente sua goiaba-com-queijo".

Professor, faça o fechamento da unidade tirando proveito dos vídeos, da leitura integral do livro que você leu e do filme a que assistiu, das correções das perguntas dos roteiros, mesmo que os alunos não tenham passado por todas as etapas.

Atividade 3

SOBRE Guimarães Rosa

Lembrete: Desta série de aulas constam sugestões de filmes, leituras e vídeos do youtube. REPETINDO: professor, embora você possa usar as três propostas, deixo a sugestão de uso diversificado a cada aula.

Filme: Noites no Sertão (1984) Direção Carlos Alberto Prates Correia. Atores principais: Débora Bloch, Cristina Aché, Carlos Kroeber. Adaptação de contos de Guimarães Rosa

Sinopse: Década de 50. Lalinha, ultimado o desquite, aceita o convite do sogro viúvo para viver na fazenda do Buriti Bom, sertão de Minas. As duas cunhadas lhe oferecem carinho. Glória, a mais nova, se apaixona por um veterinário e Lalinha passa a acompanhar as desditas da família: morte, insônia, paixões caladas, estórias da natureza e do homem, ciúmes, esperanças.

Roteiro:

Guimarães Rosa é tido como um escritor brasileiro de difícil leitura uma vez que usa, em suas obras, a linguagem dos personagens, homens do sertão. Além disso, cria inúmeros neologismos. A oportunidade de assistir ao filme facilita a compreensão dos textos desse mineiro.

 Levantamento de:

a- ambientação;

b- caracterização dos personagens;

c- impressões sobre a linguagem;

d- sinopse;

e- opinião crítica.

II- Assista aos vídeos no youtube para conhecer um pouco sobre Guimarães Rosa e sua obra. No vídeo 1 sobre o escritor. Nos de número 2 e 3 a obra "A terceira Margem do rio". Vídeos disponíveis em:

1- http://www.youtube.com/watch?v=zfuFrCXpdeI 

2- http://www.youtube.com/watch?v=F96teBzKLOg&feature=related

3- http://www.youtube.com/watch?v=aKmcTliIJQo&feature=related   

III- O professor deverá xerocar para os alunos o texto abaixo para subsidiar a análise. A ideia é ler em voz alta com eles, complementar as informações, ou seja, clarear ao máximo para que os alunos façam a atividade sugerida sem muitas dúvidas.

A terceira margem do rio   

João Guimarães Rosa   

Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a ideia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.

No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.

Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.

A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.

Nossa irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.

Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.

Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.

Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.

Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, p. 32.

Texto disponível em: http://www.releituras.com/guimarosa_margem.asp 

Roteiro para discussão do texto:

  • Professor, xeroque o roteiro para os alunos e peça a eles que respondam as perguntas em grupos de três alunos.

 1- Identifiquem o narrador do texto e estabeleçam a relação existente entre ele e os fatos narrados.

2- A família, os parentes, os estranhos se surpreenderam ao notar que "Nosso Pai", apesar da canoa, não viajaria para lugar algum. Comentem as reações que esses outros personagens tiveram.

3- Há um frase famosa de Guimarães Rosa que é: "Mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando." Há personagem(s) no texto que contrariam essa frase? Quem? Por quê?

4- Qual o fracasso do personagem narrador?

5- Resumam o conto e expliquem o título.

6- Retirem, para discussão com a turma, palavras ou expressões do texto que chamaram a atenção do grupo. Por que as escolheram?

  • Professor, faça discussões dos autores estudados até à exaustão .

Recursos Complementares
Avaliação

A avaliação do desempenho dos alunos será feita de maneira coletiva por meio de observações do professor durante a correção dos exercícios e na participação ativa nas atividades propostas.

Opinião de quem acessou

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