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Análise intertextual da subjetividade e da intencionalidade nos discursos masculino/feminino

 

29/07/2011

Autor e Coautor(es)
Marilene de Mattos Salles
imagem do usuário

JUIZ DE FORA - MG Universidade Federal de Juiz de Fora

Maria Cristina Weitzel Tavela

Estrutura Curricular
Modalidade / Nível de Ensino Componente Curricular Tema
Ensino Médio Literatura Literatura brasileira, clássica e contemporânea: criações poéticas, dramáticas e ficcionais da cultura letrada
Dados da Aula
O que o aluno poderá aprender com esta aula

As aulas visam a:

- Analisar as relações entre o eu lírico e o outro em letra de música sob a ótica do amor, da traição e do perdão.

- Analisar processos figurados e sua relevância na produção de sentidos.

- Discutir a presença de elementos dêiticos em letra de música e a sua importância quanto à identificação ou não de gêneros (masculino/ feminino).

- Avaliar a questão da subjetividade como um dos elementos responsáveis pela construção de sentidos e pelos (des)entendimenos nas relações interpessoais.  

- Analisar marcas da expressão das emoções no discurso feminino e no masculino.

- Relacionar letra de música e conto por meio de análise intertextual,  ressaltando-se o papel da intencionalidade nas citações diretas de versos da música no conto. 

Duração das atividades
6 horas/aula
Conhecimentos prévios trabalhados pelo professor com o aluno

Aulas elaboradas para alunos do 1° ano do ensino médio. É recomendável que já tenham familiaridade com o gênero textual ‘conto’ e que compreendam a subjetividade e a intertextualidade como fatores que promovem a coerência textual.

Estratégias e recursos da aula

Aulas 1 e 2

Professor: reserve um ambiente diferenciado para estas aulas, dotado de computador e data show. Inicie a aula, contando para os alunos um pouco sobre a história da canção “Mil perdões”, de Chico Buarque. Ela foi composta em 1983, para a trilha sonora do filme Perdoa-me por me traíres, de Braz Chediak, adaptação para a tela de uma peça de teatro de Nelson Rodrigues. Em outras oportunidades, Chico já havia sido convidado a compor para peças e filmes de Nelson Rodrigues, no entanto, recusara porque o famoso teatrólogo, em sua coluna do jornal O Globo, criticava impiedosamente amigos de Chico ou pessoas a quem ele admirava. Além disso, Nelson também usava sua coluna para defender a Ditadura e atacar seus opositores. Nelson, no entanto, foi “vítima do próprio veneno. O seu filho Nelson passou sete anos preso por pertencer ao MR8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), e só não morreu graças às ações do pai junto às autoridades que ele tanto elogiava”. Após deixar a prisão, Nelson Rodrigues Filho se tornou amigo de Chico, e conseguiu que este fizesse a música para a adaptação cinematográfica.  

Finalizada essa introdução, projete a imagem de Chico Buarque e investigue se os alunos conhecem esse artista extraordinário da nossa música.

Imagem 1 – disponível em

http://www.leitederramado.com.br/wordpress/wp-content/uploads/autor1.jpg

 Chico Buarque

Chico à época do lançamento do seu romance “Leite derramado”, em 2009.

Professor: para enriquecer a discussão, procure levar alguns dados sobre Chico Buarque para a sala. Informe-se em  http://pt.wikipedia.org/wiki/Chico_Buarque

Ao término dessa etapa, acesse o site  http://letras.terra.com.br/chico-buarque/85999/  para a escuta da música. Solicite que os alunos também leiam a letra.

Finalizada a escuta, faça a atividade abaixo, por escrito.         

Atividade 1

a) Nos versos de Mil perdões, um eu lírico se manifesta reiteradamente concedendo perdão por algo. Essa insistência nos permite imaginar uma história. Que tipo de relação está sendo vivenciada pelos personagens? Trata-se de uma relação amena, segura, confiável? Ou uma relação conturbada, incerta, conflituosa?

b) Ao dar título à música, Chico usou uma figura de linguagem. Qual é ela? Que relação podemos estabelecer entre a narrativa em geral e esse título?

c) Lendo a letra, é possível identificar em algum momento quem perdoa e quem é perdoado nessa relação amorosa?

(Professor: explique aos alunos que as expressões referenciais (te, ti, me, mim, etc são dêiticas, ou seja, só podemos interpretá-las num dado contexto. Assim, tanto pode ser um homem falando com uma mulher como uma mulher falando com um homem. Para facilitar a análise, usaremos as expressões eu lírico e outro, para referir a um ser, seja ele homem ou mulher.)

d) Analisando a 1ª estrofe, verifica-se, nos  versos iniciais, que o eu lírico  condena e perdoa o outro devido a sua

 (  ) sinceridade

(   ) desconfiança

(   ) ingratidão

e) No final da 1ª estrofe, o perdão ocorre porque o outro teve uma atitude de

(   ) arrependimento  

(   ) desprezo

(   ) apreço

f) Na 2ª estrofe, o eu lírico concede o perdão apesar de o outro

(   ) acreditar e bater nele.

(   ) desconfiar dele e bater nele.  

(   ) acreditar nele e beijar suas mãos

(   ) desconfiar dele e submeter-se a ele.

g) Marque V ou F.

(    ) Na 3ª estrofe podemos inferir que não há hipótese de perdão para aquele que obriga o outro a mentir. 

(    ) Na 3ª estrofe podemos inferir que o eu lírico perdoa o outro por ter que mentir para  sair livremente e rodar exuberante.

(    ) Na 3ª estrofe podemos inferir que o eu lírico perdoa o outro, embora nunca lhe conte mentiras.

h) Marque a opção correta. Nos 6 primeiros versos da 4ª estrofe, o perdão ocorre porque o outro

(    ) limita a liberdade do eu lírico e sofre enquanto o eu lírico está feliz.

(    ) concede direitos amplos ao eu lírico e não sofre se ele está feliz.

i) Releia os dois últimos versos.

“Te perdoo

Por te trair.”

Nesses versos, o eu lírico sugere uma atitude de traição do outro consigo mesmo. Dê a sua interpretação para esses versos.

(Respostas possíveis: o outro trai a confiança que deveria ter em si mesmo, nos próprios sentimentos. Seu olhar está inteiramente voltado para o eu lírico: ele observa, controla, vigia, faz cobranças; falta ao outro melhorar a autoestima, a segurança em si mesmo. Uma outra possibilidade poderia ser: o outro se trai porque evidencia a sua desconfiança, a sua insegurança, o seu ciúme, dizendo ao eu lírico tudo o que lhe atormenta a mente.) 

Aulas 3 e 4

Professor: o texto “Entrelaces”, de Carola Saavedra, faz parte da antologia Essa história está diferente, que reúne 10 contos, de escritores consagrados, produzidos a partir de músicas de Chico Buarque.

Inspirada na música “Mil perdões”, Carola monta cenários onde ocorrem episódios de desentendimentos entre um casal. Porém, ela oferece a nós leitores as versões, os olhares, as leituras que cada um faz acerca do conflito. Ela busca a subjetividade: o olhar masculino e o olhar feminino sobre um mesmo fato, aflorando com sua câmera as análises de cada um.

Antes de iniciar a leitura do conto, projete a imagem abaixo. Muito singela, essa imagem nos permite discutir a importância da subjetividade na produção dos sentidos que damos aos fatos da vida.

Imagem 2 – disponível em

http://4.bp.blogspot.com/_275kfaxKlW4/SaYhE6sAx7I/AAAAAAAAB1Y/OmzRzjUif0w/s400/peixin.jpg

Pontos de Vista

Faça oralmente a atividade a seguir.

Atividade 2

a) O que representa aquele aquário para a criança e para o gato?

b) Substitua o aquário por uma situação cotidiana de forma que você possa emitir visões diferentes sobre a situação.

c) A que conclusão podemos chegar sobre a questão da subjetividade na vida das pessoas?

Na sequência, acesse o site  http://www.youtube.com/watch?v=pvdrqL2dhrg   para que os alunos ouçam Carola Saavedra falando um pouco sobre si e sobre sua obra.

Passe à leitura do conto. Sugere-se como estratégias de leitura:

1) Leitura em voz alta pelo professor: introdução e parte 1 - versão ele e versão ela. Faça uma pausa para rápida discussão oral.

Pergunte:

a) Na introdução a autora diz:  "versões: câmera subjetiva". O que isso representa?

b) Quem são os personagens?

c) Que fato desencadeia a discussão entre eles?

d) Pelo discurso de cada personagem (versão ele e versão ela) que características emocionais podemos perceber ? 

2) Leitura silenciosa das demais versões.

3) Leitura interativa, conforme descrita na atividade 3 (aulas 5 e 6).

Entrelaces

INTRODUÇÃO

Um casal. Um apartamento. Uma cidade qualquer.

Ela, de cabelos desgrenhados, rosto sem maquiagem, uma camiseta, uma calça jeans.

Ele, uma camiseta, uma calça jeans.

Os dois sentados à mesa da cozinha, sobre a mesa o jornal do dia anterior, uma revista de decoração, uma garrafa térmica com café, duas xícaras.

Versões: câmera subjetiva.

 parte 1

versão ele

Ela abre a garrafa térmica, serve-se uma xícara de café, diz:

- Você chegou tarde ontem.

- É, perdi o último trem.

- Que último trem? Aqui não tem trem.

- Não?

- Não.

- Ah, então foi o último ônibus.

- Você estava de carro.

- Estava?

- Estava.

- Então não sei, talvez o trânsito, isso, o trânsito.

- Sei, o trânsito.

Ela fez menção de levantar da mesa, ele a segura pelo braço.

- Estou brincando com você, você deveria levar as coisas com um pouco mais de humor.

- Humor... quer dizer agora que bancar a idiota é ter humor. Nunca tinha ouvido falar nessa definição.

- Para com isso, você sabe muito bem que ontem eu tinha aquele jantar, te avisei que chegaria tarde.

-É, avisou, mas não disse que chegaria às duas da manhã.

- Não disse porque eu também não sabia que chegaria às duas da manhã. Você sabe que essas coisas demoram. Se não acredita, pega o telefone, liga para o meu irmão.

-Até parece, o seu irmão, grande testemunha.

-Bom, então não liga, o que você quer que eu faça?

-Nada, não quero que você faça nada.

Ele põe muito de leve a mão sobre o braço dela.

-Vem, vamos parar com essa discussão, não tem o menor sentido.

-Tá bom.

Ficam os dois em silêncio. Ela folheia a revista. Ele se serve uma xícara de café, coloca três colheres de açúcar, mistura longos minutos com a colher, ela o observa por cima da revista, sente uma raiva incontrolável ao vê-lo fazer isso. Tem vontade de tirar a xícara da mão dele e jogá-la pela janela. Tem vontade de gritar. Mas tenta manter-se calma, diz apenas:

- Você não precisa ficar misturando o açúcar meia hora.

- Eu sei.

-Me incomoda esse barulho da colher batendo na xícara o tempo todo.

- Pode ter certeza de que eu não faço isso com a intenção de te incomodar.

-Além disso, você põe açúcar demais no café.

-Eu sei, Dani, eu sei.

-Faz mal.

- Eu sei.

- Se você sabe, por que você faz?

- Porque eu gosto.

-Gosta do quê, de ficar diabético?

-Não, eu gosto do café com açúcar, só isso.

-Você está agressivo, por que essa agressividade agora?

-Eu não estou agressivo, eu só disse que gosto do café com açúcar.

-Você esta agressivo, sim; quem deveria estar com raiva sou eu, não você.

-Eu não estou com raiva, só estou tentando tomar o meu café em paz.

-Ótimo, então eu vou te deixar em paz.

Ela levanta com raiva da mesa, vai até a geladeira, pega uma maçã, vai embora. Ele continua ali, lendo o jornal. Pouco depois ela volta.

-Gustavo, a gente tem que conversar, mesmo que você não queira a gente tem que conversar.

-Conversar sobre o quê?

-Sobre a gente.

- Mas conversar o que sobre a gente?

-Tudo.

-Tudo?

-É, Gustavo, tudo.

Ele fecha o jornal, deixa-o num canto da mesa.

-Então tá, vamos conversar.

versão ela

Ela abre a garrafa térmica, serve-se uma xícara de café, diz:

-Você chegou tarde ontem.

-É, eu tive aquele jantar, você sabe que eu tinha aquele jantar para discutir os problemas do inventário.

-É, você tinha o tal jantar...

-Você não foi porque não quis. Não é culpa minha se você não se entende com a minha mãe.

-Eu não tenho nada contra a sua mãe.

-Bom, você diz isso agora que está bem longe, a quilômetros de distância.

-É, mas precisava ficar até duas da manhã?

-Não, não precisava, mas eu fiquei.

-E quem garante que foi isso mesmo?

-Você pode ligar para o meu irmão, se você quiser.

-O seu irmão? - ela dá uma risada. -Grande testemunha.

-Bom, então você vai ter que acreditar em mim, como se fosse uma questão de fé.

-Talvez seja isso mesmo, uma questão de fé.

Ele põe muito de leve a mão sobre o braço dela.

-Vem, vamos parar com essa discussão, não tem o menor sentido.

-Que discussão?, a gente não esta discutindo, a gente está conversando, tá bom?

-Tá bom.

Ficam os dois em silêncio. Ela folheia a revista. Ele serve uma xícara de café, coloca três colheres de açúcar, mistura longos minutos com a colher, ela o observa por cima da revista, sente uma raiva incontrolável ao vê-lo fazer isso. Tem vontade de tirar a xícara da mão dele e jogá-la pela janela. Tem vontade de gritar. Mas tenta manter-se calma, diz apenas:

-Você esta fazendo isso só para se vingar.

-Isso o que?

-Ficar duas horas fazendo barulho com essa colherzinha na xícara de café.

-Do que você ta falando, ficou maluca?

-Nada, não estou falando nada, deixa pra lá.

-Como deixa pra lá? Você está me acusando de fazer barulho com uma colherzinha para me vingar.

-É, para se vingar, sim.

-Me vingar do quê?

-De mim.

-De você? Mas por que eu me vingaria de você?

-Eu não sei. Além do mais, você enche esse café de açúcar.

-E o que é que tem isso?

-Vai ficar diabético.

-Vou, vou ficar diabético, e vou fazer isso só para me vingar, tá bom?

-Se vingar do quê?

-Sei lá, foi você que falou em vingança.

-É, só que se alguém aqui tem motivo para se vingar, esse alguém sou eu.

Ela levanta com raiva da mesa, vai até a geladeira, pega uma maçã, vai embora. Ele continua ali, lendo o jornal. Pouco depois ela volta.

-Gustavo, a gente tem que conversar, mesmo que você não queira, a gente vai ter que conversar.

-Mas o que a gente esteve fazendo esse tempo todo não foi conversar?

-Não, foi discutir.

-Ah, tá, então ótimo. Então, sobre o que você quer conversar?

-Sobre a gente, sobre o que mais seria?

-Sobre a gente?

-É, do jeito que tem sido não vai dar.

-Não vai dar o quê?

-Tudo,quer dizer, nada, nada vai dar.

-Dani, faz o favor de ser mais clara.

Ela parece que vai chorar. Ele fecha o jornal, deixa-o num canto da mesa.

-Então tá, vamos conversar.

 

Parte 2

 versão ele

Ela abre a geladeira, pega outra maçã, faz menção de mordê-la, muda de ideia, guarda-a novamente na geladeira. Vai até a janela, debruça-se no parapeito. Fica ali imóvel por alguns instantes. Ele a observa. Vendo que ela continua em silêncio, diz:

-Você não queria conversar?

Ela continua sem dizer nada, imóvel. Não havendo resposta, ele volta a ler o jornal. Logo em seguida, ela ainda de costas, comenta:

-O que mais me incomoda neste apartamento é que não tem vista. Você vai até a janela e a única coisa que você vê é o prédio da frente, os vizinhos que não interessam a ninguém. Tudo tão escuro, cinza. Mas você insistiu em que a gente ficasse aqui, no centro, por causa do teu trabalho, e eu queria tanto morar no mato, uma casinha num lugar afastado, mas tinha você e o teu trabalho, eu naquela época aceitei, que idiota, a gente quando esta apaixonada aceita qualquer coisa, até morar num buraco.

-Olha, eu acho que isto aqui está bem longe de ser um buraco.

Ela continua de costas, parece não ouvi-lo.

-Por amor a gente faz as coisas mais idiotas, a coisas mais idiotas...

-É um apartamento até muito bom, amplo, perto de tudo, a gente não precisa se preocupar com trânsito. Outro dia, você mesma disse como era bom não ter que se preocupar com o trânsito.

-Quando eu era criança a gente morava numa casa, não era uma casa enorme, nada disso, mas tinha um quintal, um jardinzinho, e tinha uma árvore, uma mangueira, que luxo, eu penso agora, ter uma mangueira no quintal de casa.

-Outro dia li no jornal, deveria ter guardado pra você, li que as pessoas passam em média três horas por dia indo e voltando do trabalho.

-Lembro que tinha épocas em que ficava cheio de mangas no chão do quintal, aquele cheiro de manga, a minha mãe mandava a empregada fazer compotas, mesmo assim sobrava um monte, ela dava de presente, e mesmo assim sobrava.

-Na época você achou ótimo estar perto de tudo, você não falou nada de ir morar no meio do mato.

-A gente tinha o Nero, um pastor-alemão, lembro que ele ficava louco, comia manga até não aguentar, depois passava mal, uma vez tivemos que levá-lo ao veterinário, lembro...

-Sabe, é difícil entender o que você quer. Primeiro você faz um escândalo, que quer conversar, e quando eu digo para a gente conversar você vem com esse papo de manga e cachorro e vista para o mar.

Ela se vira, olha-o com raiva.

-Eu não disse nada de vista para o mar, você tem essa mania de pôr palavras na minha boca.

-Está certo, você não falou em vista para o mar.

Ele fez menção de levantar. Ela dá um passo à frente.

-Aonde você vai?

-Vou dar uma volta.

-Você não pode ir agora,  a gente tem que conversar, você tinha prometido.

- Eu não prometi coisa nenhuma, você é que coloca palavras na minha boca. Você me pediu para conversar e ficou ai de costas para mim, resmungando não sei o quê.

-Eu não estava resmungando.

-Então está certo, você não estava resmungando.

Ela se aproxima, coloca a mão no ombro dele. O tom de voz agora é suave, quase doce.

-Vamos conversar, por favor, é importante.

-Está certo, vamos conversar.

Ela senta-se à mesa. Serve-se mais café, mas não bebe, fica com a xícara entre mãos, como se fizesse frio e as esquentasse. Faz uma pausa, parece estar procurando as palavras mais apropriadas. Quando finalmente pergunta, a voz sai mais aguda que o normal.

-Aonde você foi ontem?

-Como assim, aonde eu fui? Fui jantar com a minha mãe e o meu irmão, você sabe muito bem.

-Não, eu quero saber aonde você foi de verdade.

-Será que você está surda? Estou te dizendo: fui jantar com a minha mãe e o meu irmão. E detalhe: se você não foi é porque não quis.

-Eu sei.

-Ótimo.

-Eu liguei para você, mas você não atendeu.

-Eu não ouvi. Logo em seguida eu te liguei, não liguei?

- Ligou.

-Então?

-Então nada.

Agora é ele que levanta e vai até a janela. Ela o segue com o olhar. Ele de costas, debruçado. Após um longo período de silêncio, ela diz:

-Gustavo?

-O que é? - Ele continua de costas

- Tenho que te dizer uma coisa.

 - O que é?

- Ontem...

-Ontem o quê?

-Ontem quando você me ligou de volta, e tinha aquele barulho todo e eu te disse que era televisão... pois é, não era a televisão.

-Não?

-Não, ontem quando você me ligou eu não estava em casa.

Ele se vira.

 -Não?

-Não.

versão ela

Ela abre a geladeira, pega outra maçã, faz menção de mordê-la, muda de idéia, guarda-a novamente na geladeira. Vai até a janela, debruça-se no parapeito. Fica ali imóvel por alguns instantes. Ele a observa. Vendo que ela continua em silêncio, diz:

-Você não queria conversar?

Ela continua sem dizer nada, imóvel. Não havendo resposta, ele volta a ler o jornal. Logo em seguida, ela ainda de costas, comenta:

-Quando a gente se mudou para cá, estava um dia lindo, acho que foi final de setembro, é, foi final de setembro. Lembro do apartamento cheio de caixas, eu estava tão feliz naquele dia, não sei por quê, talvez porque era o nosso primeiro apartamento juntos, a primeira vez morando na mesma casa. Eu achava tudo ótimo, até os problemas, os problemas me pareciam apenas um detalhe, algo simples de resolver. Estranho como as coisas mudam quando a gente está apaixonada. Eu achava este lugar lindo, apesar de tudo, eu achava lindo.

-E agora não acha mais?

Ela continua de costas, parece não ouvi-lo.

-Por amor a gente faz as coisas mais idiotas.

-O que você quer dizer com isso?

-Lembro que quando criança, eu achava que a casa em que eu morava com meus pais era enorme, era uma casa com quintal, um jardinzinho na entrada. Eu adorava brincar no quintal, ali o meu pai instalou um balanço para mim, era um desses balanços bem simples, de madeira, todos os dias quando eu chegava da escola corria para o quintal por causa do balanço.

- O que há de errado com este apartamento? Eu acho um lugar muito bom, amplo, bem localizado.

-Um dia o balanço quebrou. - Ela faz uma pausa. -Mas não era isso que eu ia dizer; eu ia dizer que um dia meus pais venderam a casa para os pais de uma conhecida minha do colégio. Depois, muitos anos depois, eu voltei lá, era o aniversário dela e eu havia sido convidada. Lembro que entrei na casa, meu coração batia forte, e quando entrei a primeira coisa que me veio à mente foi isto, que minha lembrança era muito maior, que o quintal era enorme, mas não era. Era um quintalzinho.

-E o aluguel é muito em conta, dificilmente arranjaríamos lugar melhor do que este, considerando a relação custo-benefício.

-Deveria ser proibido, isso de voltar aos lugares da infância. É sempre uma decepção, é como assistir a filmes que a gente gostava quando criança. Ou livros. Outro dia me aconteceu isso, eu resolvi reler um livro que eu adorava quando criança, li e depois fiquei pensando que não deveria ter lido. Você não acha?

-Acho o quê, do que você tá falando?

Ela se vira para ele.

-Do livro.

-Pensei que falávamos do apartamento.

-Sabe qual é o problema?

-Que problema?

-O problema é que você não me escuta, é como se eu estivesse falando sozinha.

-Mas você está falando sozinha, aí, olhando pela janela, de costas pra mim.

-Eu estava falando com você.

-Bom, não parecia.

-Não parecia, mas estava. Sabe, é muito difícil a nossa convivência.

-É, eu concordo.

Ele faz menção de levantar. Ela dá um passo à frente.

-Aonde você vai?

-Vou dar uma volta.

-Mas você não pode ir agora, a gente tem que conversar, você tinha me prometido.

-Olha, eu vou dar uma volta, espairecer, hoje você acordou com vontade de brigar, quando o seu humor  melhorar a gente conversa, tá bom?

-Mas eu não quero brigar; é a ultima coisa que eu quero.

Ela se aproxima, coloca a mão no ombro dele. O tom de voz agora é suave, quase doce.

-Vamos conversar agora, por favor, é importante.

Ele pensa uns instantes, acaba concordando.

-Está certo, vamos conversar.

Ela senta-se à mesa. Serve-se mais café, mas não bebe, fica com a xícara entre mãos, como se fizesse frio e as esquentasse.

-Aonde você foi ontem?

-Mas de novo essa pergunta? Já te falei: fui ao jantar com minha mãe e o meu irmão, esse jantar já estava marcado desde a semana passada, você sabe que eu tenho que resolver as coisas do inventrio.

-É o que você disse

-Claro que é o que eu disse, o que mais eu diria? Quer que eu invente alguma coisa?

-Eu quero que diga a verdade.

-Eu já te disse a verdade.

-Eu não acredito.

-Bom, então não posso fazer nada, se não quer acreditar o problema é seu.

Agora é ele que levanta e vai até a janela. Ela o segue com o olhar. Ele de costas, debruçado. Após um longo período de silêncio, ela diz:

-Gustavo?

-O que é? - Ele continua de costas.

-Tenho que te dizer uma coisa.

-O que é?

-Ontem...

-Ontem o que?

-Eu menti pra você.

Ele se vira.

-Mentiu? Como assim?

-É, menti.

 

parte 3

versão ele

Ela prende o cabelo com um elástico que levava no pulso, bebe um gole de café. Com um sorriso repentino, diz:

-Eu estava num bar.

-Num bar...

-Ela faz uma pausa antes de responder.

-É, com a Cláudia.

-Que Cláudia?

-Cláudia, aquela minha amiga do época da faculdade.

-Ah, tá, e como ela está?

-Bem. A gente foi tomar um chope, pôr o papo em dia. Como você não estava em casa, eu aproveitei pra sair um pouco, me divertir.

-Que bom, faz bem.

-O bar estava cheio.

-É mesmo?

-É, a gente até encontrou uns amigos dela. Ficamos conversando.

-Quem bom.

-É. Foi ótimo, acho que vou começar a sair mais vezes, tenho ficado muito em casa nos últimos tempos.

-É uma boa ideia. Se vai te fazer bem, acho que você deve sair com mais frequência mesmo.

-Você acha?

-Acho.

Ela lhe lança  um olhar desconfiado.

Ele finge que não percebe, vai até a geladeira, tira um pedaço de mortadela, pega uma faca, senta-se novamente à mesa. Ela o observa com ar de censura.

-Você pode pegar um prato não pode?

-Pra quê?

-Bom, normalmente as pessoas civilizadas colocam a comida num prato e não em cima da toalha de mesa.

-E quem disse que eu sou civilizado?

Ela não responde. Ele acaba cedendo.

-Tá certo.

-Ele vai até o armário, pega um prato fundo, coloca o pedaço de mortadela e a faca sobre ele. Ela continua observando cada um dos seus movimentos. Ele abre o embrulho com a mortadela, corta um pedaço com a faca, leva à boca.

-Você vai comer mortadela pura?

-Vou.

-A essa hora da manhã?

-É, a essa hora da manhã, por quê? Tem alguma lei me proibindo? A lei da mortadela?

-Não, não tem lei nenhuma, e mesmo que tivesse isso não seria um empecilho para você.

-Não, realmente não seria.

Ela o olha com raiva. Ele continua comendo, ouve-se o barulho da mastigação. Ela cada vez mais inquieta.

-Precisa fazer esse barulho todo?

-Que barulho?

-Não dá pra você mastigar como uma pessoa normal?

-Mas eu estou mastigando como uma pessoa normal.

-Não está, não,  você está fazendo isso só pra me irritar, e está conseguindo.

-É, como se fosse muito difícil te irritar.

-Para você é facílimo, tenha certeza disso.

-Está certo, o que é que você quer que eu faça? Que pare de comer porque a minha mastigação te incomoda? Que passe a mortadela no liquidificador e beba feito suco para você não achar que eu estou te atacando? É isso?

-Não, eu não disse isso.

Ela levanta vai até o fogão e coloca a água para ferver.

-Vou fazer chá, quer?

-Não, obrigado.

Ficam os dois em silêncio, ele cortando pequenos pedaços de mortadela e deixando-os enfileirados no prato. Ela tira uma xícara e uma caixa de chá do armário. Espera a água ferver, termina de preparar o chá. Senta-se à mesa novamente.

-Você não deveria beber tanto café, faz mal.

-É, eu sei.

-Não quer mesmo uma xícara de chá? É chá de jasmim.

-Não, obrigado!

-Você está chateado?

-Chateado? Mas por que eu estaria?

-Não sei... por causa da mortadela, ou alguma outra coisa que eu falei antes.

-Antes?

-É, algo que tenha te incomodado.

-O que você esta querendo dizer?

-Nada não, nada.

Ele volta a comer a mortadela, os pequenos pedaços que havia deixado no prato. Ela ouve o barulho da mastigação, mas não diz nada.

 

versão ela

Ela prende o cabelo com um elástico que levava no pulso, bebe um gole de café.Com um sorriso repentino, diz:

-Eu estava num bar.

-Num bar...

Ela fez uma pausa antes de responder.

-É, num bar.

-Eu posso saber com quem?

-Com a Claudia, aquela minha amiga da época da faculdade.

-Aquela sua amiga, sei...

-É, sim, ela mesma.

-E por que você mentiu?

-Mas eu estou te dizendo a verdade, eu fui tomar um chope com a Claudia.

-Não estou falando de agora, estou falando de antes. Por que você não me contou que tinha saído?

-Não sei.

-Resumindo: você mente e depois faz escândalo porque eu fui jantar fora, é isso?

-Não, não é isso.

-Então é o quê?

-Não é nada.

-Então por que não me disse que tinha saído ontem?

-Não sei, esqueci.

-Esqueceu, sei... E agora, de repente, você se lembrou, é isso?

-É.

-Está certo.

Ele lhe lança um olhar desconfiado. Ela finge que não percebe.

-E como foi? Se divertiu?

-Bastante.

-E como vai a Cláudia, bem?

-Tudo bem.

-E estavam só vocês duas?

-Não, tinha mais uns amigos dela.

-Amigos?

-É.

Ficam os dois em silêncio. Ela vai até a geladeira, tira um pedaço de mortadela, pega uma faca, senta-se novamente à mesa. Ele a observa com ar de censura.

-Você vai comer mortadela?

-Vou.

-A essa hora da manhã?

-É, a essa hora da manhã, por quê?

-Nada. Mas você anda nervosa ultimamente, não?

-Nervosa? Não, não ando nervosa, não. Por que você está dizendo isso?

-Nada, é que você anda comendo mais do que o normal, dá pra perceber.

-Como assim, dá pra perceber?

-Nada.

Ele levanta da cadeira, vai até a pia e de lá a observa com atenção, analisando o seu corpo.

-O que você esta olhando?

-Nada.

Ela desiste de comer, empurra o prato com mortadela para o lado. Levanta, vai até o fogão, põe água para ferver.

-Desistiu da mortadela?

-É, perdi a fome, vou fazer um chá.

-É, chá é uma boa escolha, dizem que emagrece.

Ela lhe lança um olhar de ódio.

-Por que essa preocupação com o meu peso? Você agora é nutricionista por acaso?

-Eu não estou preocupado com o seu peso, eu só estava preocupado com sua saúde. Para que você esteja em forma quando sair com suas amigas por aí.

-Eu estou em forma, não se preocupe.

Ficam os dois em silêncio. Ela tira uma xícara e uma caixa de chá do armário. Espera a água ferver, termina de preparar o chá. Senta-se à mesa novamente.

-Foi ótimo ontem.

-Quem bom pra você.

-Me diverti muito.

-Maravilha.

-Eu estava precisando mesmo sair, ver pessoas. Tenho andado muito fechada em casa. E como você quase nunca está.

-Ótimo, assim você sai bastante, se diverte, só não pode chegar em casa e me perturbar por causa do que eu fiz ou deixei de fazer.

-Eu não me importo, você faz o que bem quiser.

-Ótimo então.

-Ótimo.

Ela resolve comer a mortadela, corta uma fatia. Pega um pedaço de pão, faz um sanduíche.

-Vai comer mortadela com pão?

-Vou, qual é o problema agora?

-Não tem problema nenhum, foi só uma pergunta.

Ela come, ele serve-se uma xícara de chá.

 parte 4

versão ele

Ele acaba de comer, empurra o prato para o lado. Volta a ler o jornal.

Ela comenta:

-Eu sempre quis ter uma máquina de fazer pão.

-O que é que foi?

-Eu disse que eu sempre quis ter uma máquina de fazer pão. Outro dia vi uma na loja, importada, vem até com receitas.

-Para quê? Você ia usar uma ou duas vezes e depois ia esquecer aí no armário, como sempre faz.

-Como assim, como eu sempre faço?

-Você compra as coisas e depois não usa, dinheiro jogado fora. É só você abrir esses armários, as gavetas, máquina de cortar não sei o quê, máquina de fazer massa. Se lembra disso, da tal máquina de fazer macarrão que você me pediu para trazer daquela viagem, me deu um trabalhão achar aquilo, depois carregar aquele trambolho, e para quê? Você usou uma vez, disse que dava muito trabalho e deixou aí. Está aí até hoje.

-E o que é que tem? Quem pagou fui eu, o dinheiro é meu, eu faço o que eu bem entender, se eu quiser deixar guardado até apodrecer, eu deixo; se eu quiser jogar pela janela, eu jogo.

-Então ótimo, mas da próxima vez vá você mesma comprar a sua máquina de fazer não sei o quê, não me peça mais nada.

-Há muito tempo eu não te peço nada.

-Não pede porque não quer.

-Não peço porque você nunca está em casa, você está sempre ocupado, como ontem, por exemplo.

-Dani, por favor, não vai começar essa história outra vez.

-Por quê? Te incomoda?

-Quer saber, me incomoda sim, me incomoda essa tua desconfiança o tempo todo. É um inferno isso.

-Te incomoda, é? Coitado, como você sofre... como você consegue viver nesse inferno, com essa mulher insuportável, essa mulher injusta que tem o desplante de desconfiar de você?

-Essa tua ironia infantil não vai  levar a nada.

-Ironia infantil? É só o que faltava, você mente pra mim, você mente pra mim o tempo todo e se eu digo alguma coisa, se eu faço a menor reclamação é ironia infantil?

-Dani, eu não estou mentindo pra você, quer parar com isso?

-Onde você esteve ontem então? Fala de uma vez.

-Pelo amor de Deus, eu já te disse mil vezes, fui jantar com a minha mãe e com o meu irmão.

-Não foi coisa nenhuma!

-Viu, não adianta eu falar que você não acredita.

-É claro que eu não acredito, não acredito em meia palavra que você diz.

-Bom, então pra que você me pergunta?

-Pra ver se você finalmente diz a verdade

-Mas se não adianta, qualquer coisa que eu te diga, você vai dizer que eu estou mentindo.

-Por que você não diz a verdade? É tão difícil assim?

-Que verdade é essa? O que você quer ouvir?

- Aonde você foi ontem? Com quem?

- Assim não dá pra conversar com você.

-Viu o que você faz? Você desconversa, como você é covarde.

-Mas o que é que eu fiz? Eu não fiz nada.

Ela levanta, vai até a pia, abre a torneira, fecha-a novamente. Ele volta a comer a mortadela, tira pequenos pedaços de cada vez. Ouve-se a mastigação. Ela, encostada na pia, lança-lhe um olhar de ódio.

-É impressionante, como você consegue?

-O que foi agora?

-Como você consegue comer no meio de uma discussão?

-Qual é o problema? É proibido?

-Quer parar de me tratar como se eu fosse uma débil mental?

-Se você se sente assim, não é culpa minha.

-E você por acaso se acha muito brilhante? Tudo o que eu te digo você responde com essa frase: ”É proibido? É proibido?”. Como você é ridículo.

-E o que é que tem? É proibido agora?

-Quer parar com isso?

-Com isso o quê?

-Com isso tudo, ouviu, isso tudo!

-Mas isso tudo o quê? Você ficou louca?

-É, fiquei louca, sim. Quer saber, fiquei louca, maluca, ensandecida, estou cansada de ter que ser sempre racional, equilibrada, cansei, quer saber, cansei, cansei de você, desta casa, desta vida, das suas mentiras, cansei de tudo, ouviu, cansei.

Ele não diz nada. Ela continua:

-Eu cansei, está me ouvindo?

Ele finge que não ouve, mas continua comendo os pequenos pedaços que corta da mortadela. Ela se aproxima, tira a mortadela da mão dele e joga na parede.

-E cansei também desta merda de mortadela.

Junto com a mortadela cai também o prato e a faca. Ela se abaixa, pega o prato e joga-o também contra a parede.

- De tudo, ouviu, de tudo.

Ela pega a faca, mas ele a segura com força pelo punho.

-Solta isso!

-Me larga!

-Solta isso, ficou louca?

-Me larga, você está me machucando.

-Não vou largar enquanto você não parar com isso.

Ela se debate, tenta soltar a mão, mas ele não permite. Após algum tempo, ela acaba soltando a faca

-Eu te odeio, sabia, eu te odeio.

Ela começa a chorar. Ele a solta, ela dá um passo para trás, apoia o corpo na bancada e vai se deixando cair. Ela caída no chão, ele se aproxima lentamente, a abraça.

-Tudo bem, pode me odiar, eu só não queria que você se machucasse, ou que fizesse alguma bobagem.

Ela se deixa abraçar. Chora ainda mais. O corpo inteiro treme. Ficam os dois em silêncio, por longos minutos. Depois ele a ajuda a levantar.

-Vem, levanta daí,senta na cadeira que é melhor.

Já mais calma, ela deixa que ele a ajude, obedece, senta-se na cadeira, o rosto ainda úmido das últimas lágrimas. Ele lhe serve uma xícara de chá.

-Vem,bebe um pouco, vai te fazer bem.

Ela obedece, bebe em pequenos goles.

-Quer comer alguma coisa? Você não comeu nada.

Ela faz que não com a cabeça.

-Uma fruta? Uma torrada?

Ela repete o gesto de recusa.

-Está certo. Então um pouco de música vai te fazer bem.

Ele vai até a bancada, liga o aparelho de som. Aperta o play. Ouve-se “Te perdoo por fazeres mil perguntas que em vidas que andam juntas ninguém faz, te perdoo por pedires perdão, por me amares demais...”.

Imediatamente, os dois se entreolham, mal se mexem, não dizem nada. O ar torna-se rarefeito. Como se qualquer movimento em falso pudesse provocar uma explosão. Ele tem vontade de desligar, livrar-se daquela música o mais rápido possível, mas sabe que o gesto pode ser mal interpretado. Ele olha para a faca que deixara sobre a mesa, olha para o aparelho de som, indeciso sobre o que fazer. O tempo em suspenso. Até que ela se levanta da cadeira, aproxima-se, passa os braços sobre os ombros dele, como num abraço, encosta-se ao corpo dele, apoia a cabeça em seu peito. Ele envolve a cintura dela. Ficam alguns instantes nessa posição, parados, até que ela começa a se movimentar, movimentos cuidadosos, lentos, e ele, num gesto automático, passa a acompanhá-la naquela estranha dança. Os dois dançam e não dizem nada.

versão ela

Ela acaba de comer, empurra o prato para o lado, passa a ler a revista de decoração.

-Instrutiva sua leitura.

Ela sem levantar os olhos da revista.

-É, muito.

-Não sei para que tanta preocupação em decorar a casa, agora que você parece bem mais orientada para fora.

-É, tem razão, vou largar essa revista e vou comprar uma de dicas de sedução.

-É, vai ser útil para você.

-Muito.

Ela levanta, guarda o restante da mortadela na geladeira.

-Dani, sabe o que mais me incomoda?

-Nao, não sei, é tanta coisa que te incomoda, como é que eu vou saber?

-É impressionante como você se faz de sonsa.

-Eu? Do que você esta falando?

-É, você faz uma cena porque eu sai para jantar com a minha mãe e o meu irmão, faz escândalo, para depois me dizer que passou a noite com uns amigos.

-Eu não passei a noite, tanto que quando você chegou, eu já estava em casa.

-É, mas já era quase de madrugada.

-Pois é, quem chegou tarde foi você, a culpa não é minha se você chegou de madrugada.

-Eu estava resolvendo os problemas do inventário, já te disse.

-Até as duas da manhã.

-Até as duas da manhã.

-Viu, eu poderia dizer a mesma coisa.

-Dizer o quê?

-Que você se faz de sonso. Faz escândalo porque eu saí para tomar um chope, sendo que você chegou bem depois de mim.

-É muito diferente!

-E qual a diferença?

-A diferença é que eu saí com pessoas que você conhece, e eu não tenho a mínima ideia de quem é essa gente que você encontrou nesse bar.

-Como não tem ideia? Você sabe muito bem quem é a Cláudia.

-Por isso mesmo.

-Por isso mesmo o quê?

-Eu não estou dizendo nada.

Ela levanta, vai até a pia, abre a torneira, fica alguns instantes como hipnotizada pela água, volta a fechar a torneira. Ele comenta:

-Água não é de graça, daqui a alguns anos vai ter gente se matando por um pouco de água, e você aí, desperdiçando.

-Eu faço o que bem entender, quem paga as minhas contas sou eu.

-Pagar as suas contas não te dá o direito de destruir o meio ambiente. É por causa de gente como você que o planeta está se acabando.

-Claro, agora eu sou a culpada de tudo, da extinção das baleias, da destruição da camada de ozônio, do derretimento das calotas polares.

-De tudo não, mas de uma futura falta de água, é sim. Você sabia que esse vai ser o grande problema da humanidade?

-Ah, como você é ridículo. Não tem nada melhor pra dizer, não?

-Eu estou falando sério.

-Sabe qual é o seu problema?

-Diga, doutora, qual é o meu problema?

-O seu problema é que você é covarde. Sempre foi.

-Obrigado, doutora, por esse diagnóstico tão preciso e imparcial.

- Essa tua ironia infantil não vai levar a nada, sabia?

-Ironia infantil... você está um poço de simpatia hoje.

-Por que você não cria coragem, uma vez na vida, e diz as coisas como elas são?

-O que você quer que eu diga?

-Que você está com raiva por eu ter saído ontem em vez de ficar te esperando em casa como sempre faço.

-Eu não estou com raiva.

-Você está furioso

-Não estou, você sai com quem você bem entender.

-Exatamente, eu saio com quem eu bem entender.

-Ótimo pra você.

-E você não se importa?

-Não, não me importo. Você é adulta, vacinada, sabe o que faz.

-É mesmo?

-É, é mesmo.

-Como você é seguro de si, não?

-Se você acha...

-De onde você tira essas certezas todas?

-Que certezas?

-Gustavo, será que nunca te passou pela cabeça que eu talvez não seja a pessoa que você pensa que eu sou?

-E não é?

-Será que você nunca imaginou que um dia eu poderia querer te dar o troco?

-Me dar o troco de quê? Do que você está falando?

-Você sabe muito bem.

-Não, eu não sei.

-Nunca te passou pela cabeça que nas vezes em que você voltou tarde eu poderia ter também algo a esconder? Nunca te passou pela cabeça que talvez você não seja o único?

-Não sei do que você está falando.

-Está certo. Deixa pra lá.

Os dois ficam em silêncio. Ela vai até a janela. Ele continua sentado à mesa. Lábios contraídos. Serve-se mais uma xícara de chá. Ela diz:

- Vamos fazer o seguinte: vamos parar com essa discussão, esquecer  tudo isso?

- Eu não estou discutindo. – Sua voz é seca.

-Está certo, vamos esquecer então.

Ele não responde. Ela se aproxima, acaricia seu rosto, seu cabelo. Há nervosismo em seus gestos.

-Por favor, me perdoa, eu não queria ter dito o que disse.

Ele continua em silêncio, a xícara de chá entre as mãos.

-Eu não queria mesmo, não sei o que aconteceu, não queria ter dito aquilo, não era verdade, eu só estava com raiva. A gente diz um monte de bobagens quando está com raiva.

-Tudo bem, deixa pra lá.

Após mais alguns instantes em silêncio, ela, inquieta, diz:

-Sabe o que mais? Vou ligar o som, um pouco de música, vai nos fazer bem. O que você acha?

Ele não responde. Ela vai até a bancada, liga o aparelho de som. Ouve-se “Te perdoo por fazeres mil perguntas que em vidas que andam juntas ninguém faz, te perdoo por pedires perdão, por me amares demais...”.

Imediatamente, os dois se entreolham mal se mexem, não dizem nada. O ar torna-se rarefeito. Como se qualquer movimento em falso pudesse provocar uma explosão. Ela tem vontade de desligar, livrar-se daquela música o mais rápido possível, mas sabe que o gesto pode ser mal interpretado. Olha para a xícara de chá que ele tem nas mãos, olha para o aparelho de som, indecisa sobre o que fazer. O tempo em suspenso. Até que ele levanta da cadeira, aproxima-se, ela tem medo, pela primeira vez sente medo dele. Ele passa os braços em volta dela, como num abraço, ela retribui insegura, ficam alguns instantes nessa posição, parados, até que ele começa a se movimentar, movimentos vagarosos, quase imperceptíveis, e ela, num gesto automático, passa a acompanhá-lo naquela estranha dança, os dois dançam e não dizem nada.

Aulas 5 e 6

Atividade 3

Promova uma leitura interativa do conto todo por alunos mais proficientes na arte de ler um texto com expressividade. Os demais assistirão como se estivessem num teatro. (Se houver possibilidade, combine essa atividade com o professor de Artes, tornando esta uma atividade interdisciplinar. Você poderá selecionar previamente aqueles alunos que farão a leitura interativa  e o professor de Artes poderá ensaiá-los, passando técnicas de artes cênicas.)

Terminada a leitura, aplique a atividade abaixo, para ser feita em grupo de 4 alunos, por escrito. Ao final, promova a apresentação dos resultados e uma discussão sobre as impressões dos alunos.

Atividade 4

a) Levante algumas características típicas do discurso masculino e do feminino nas partes 2,3 e 4 do conto.

b) Levante alguns momentos em que a linguagem corporal é acentuada, revelando comportamentos e atitudes dos personagens decisivos para o desenvolvimento e desfecho da história.

c) Identifique no texto a citação direta da letra da música Mil perdões e explique a intencionalidade do personagem em cada uma das versões (ele e ela).

d) Explique o título da narrativa a partir do desfecho do conto.

Recursos Complementares

COUTO, Mia. Olhos nus: olhos. In: BRESSANE, Ronaldo (Org.) Essa história está diferente: dez contos para canções de Chico Buarque. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

HOMEM, Wagner. Histórias de canções: Chico Buarque. São Paulo: Leya, 2009.

Avaliação

 Deverá ser feita em dupla.

Imagine um novo fato, relacionado ao conto, capaz de desencadear um outro atrito entre os personagens. Em seguida, crie uma versão ele e uma versão ela nos moldes da narrativa que você  leu.

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