Portal do Governo Brasileiro
Início do Conteúdo
VISUALIZAR AULA
 


Definindo o tom da crônica

 

22/04/2014

Autor e Coautor(es)
ROGERIO DE CASTRO ANGELO
imagem do usuário

UBERLANDIA - MG ESC DE EDUCACAO BASICA

Eliana Dias, Lazuita Goretti de Oliveira

Estrutura Curricular
Modalidade / Nível de Ensino Componente Curricular Tema
Ensino Fundamental Final Língua Portuguesa Língua oral e escrita: prática de produção de textos orais e escritos
Ensino Fundamental Final Língua Portuguesa Língua oral e escrita: prática de escuta e de leitura de textos
Ensino Fundamental Final Língua Portuguesa Análise linguística: processos de construção de significação
Dados da Aula
O que o aluno poderá aprender com esta aula
  • Conhecer alguns dos diferentes tons que podem ser imprimidos a uma crônica.
  • Reconhecer quais recursos linguísticos podem auxiliar na criação do tom da crônica.
Duração das atividades
3 aulas de 50 minutos cada
Conhecimentos prévios trabalhados pelo professor com o aluno
  • Conhecer  o gênero textual crônica, visto que esta é uma aula para ampliação da familiaridade dos alunos com o gênero.
  • Habilidades de leitura e escrita de textos literários.
Estratégias e recursos da aula

Estratégias

  • Discussão oral.
  • Leitura oral.
  • Leitura silenciosa e discussão de textos literários.
  • Resolução de questionário escrito (em grupos).
  • Produção textual escrita (em duplas).
  • Análise de produção textual (entre os pares).
  • Reescrita de textos.

 

Recursos

  • Apostila com textos e questionários.
  • Papel para a produção textual.

 

Módulo 1

 

Atividade 1

 

O professor  deverá iniciar a aula, relembrando (oralmente) com os alunos o que é o gênero crônica, onde geralmente elas são publicadas, qual é o público-alvo desse gênero e quais são as  suas características básicas.

 

Então, para criar uma atmosfera mais propícia ao trabalho com o gênero crônica, o professor entregará para os alunos uma cópia da crônica, "O assalto", de Carlos Drummond de Andrade, a qual será lida em voz alta pelos alunos, alternadamente.

 

 

feira

Disponível em: <http://blogs.odiario.com/antoniomarcos/files/2012/11/FEIRAS-LIVRES.jpg>. Acesso em: 18 abr. 2014.


 

O assalto - Carlos Drummond de Andrade

Na feira, a gorda senhora protestou a altos brados contra o preço do chuchu:

- Isto é um assalto!

Houve um rebuliço. Os que estavam perto fugiram. Alguém, correndo, foi chamar a guarda. Um minuto depois, a rua inteira, atravancada, mas provida de admirável serviço de comunicação espontânea, sabia que se estava perpetando um assalto ao banco. Mas que banco? Havia banco naquela rua? Evidente que sim, pois do contrário como poderia ser assaltado?

- Um assalto! Um assalto !- a senhora continuava a exclamar, e quem não tinha escutado, escutou, multiplicando a notícia. Aquela voz surgindo do mar de barracas e legumes era como a própria sirena policial, documentando, por seu uivo, a ocorrência grave, que fatalmente se estaria consumando ali, na claridade do dia, sem que ninguém pudesse evitá-la.

Moleques de carrinho corriam em todas direções, atropelando-se uns aos outros. Queriam salvar as mercadorias que transportavam. Não era o instinto de propriedade que os impelia. Sentiam-se responsáveis pelo transporte. E no atropelo da fuga, pacotes rasgavam-se, melancias rolavam, tomates esborrachavam-se no asfalto. Se a fruta cai no chão, já não é de ninguém; é de qualquer um, inclusive do transportador. Em ocasiões de assalto, quem é vai reclamar uma penca de bananas meio amassadas?

- Olha o assalto! Tem um assalto ali adiante!

O ônibus na rua transversal parou para assuntar. Passageiros ergueram-se, puseram o nariz para fora. Não se via nada. O motorista desceu, desceu o cobrador, um passageiro advertiu:

- No que você vai a fim de ver assalto, eles assaltam sua caixa.

Ele nem escutou. Então os passageiros também acharam de bom alvitre abandonar o veículo, na ânsia de saber, que vem movendo o homem, desde a idade da pedra até a idade do módulo lunar.

Outros ônibus pararam, a rua entupiu.

- Melhor. Todas as ruas estavam bloqueadas. Assim eles não podem dar no pé.

- É uma mulher que chefia o bando!

- Já sei. A tal dondoca loura.

- A loura assalta em São Paulo. Aqui é a morena.
 
- Uma gorda. Está de metralhadora. Eu vi.

- Minha Nossa Senhora, o mundo está virado!

- Vai ver que está caçando é marido.

- Não brinca numa hora dessas. Olha aí sangue escorrendo!

- Sangue nada, tomate.

Na confusão, circularam notícias diversas. O assalto fora a uma joalheria, as vitrines tinham sido esmigalhadas a bala. E havia joias pelo chão, braceletes, relógios. O que os bandidos não levaram, na pressa, era agora objeto de saque popular. Morreram no mínimo duas pessoas, e três estavam gravemente feridas.barracas derrubadas assinalavam o ímpeto da convulsão coletiva. Era preciso abrir caminho a todo custo. No rumo de assalto, para ver, e no rumo contrário, para escapar. Os grupos divergentes chocavam-se, e às vezes mudavam de direção: quem fugia dava marcha à ré, quem queria espiar era arrastado pela massa oposta. Os edifícios de apartamentos tinham fechado suas portas, logo que o primeiro foi invadido por pessoas que pretendiam, ao mesmo tempo, salvar o pelo e contemplar lá de cima. Janelas e balcões apinhados de moradores, que gritavam:

- Pega! Pega! Correu para lá!

- Olha ele ali!

- Eles entraram na kombi ali adiante!

- É um mascarado! Não, são dois mascarados!

Ouviu-se nitidamente o pipocar de uma metralhadora, a pequena distância. Foi um deitar-no-chäo geral, e como não havia espaço, uns caíam por cima dos outros. Cessou o ruído. Voltou. Que assalto era esse, dilatado no tempo, repetido, confuso?

- Olha o diabo daquele escurinho tocando matraca! E a gente com dor-de-barriga, pensando que era metralhadora!

Caíram em cima do garoto, que desapareceu na multidão. A senhora gorda apareceu, muito vermelha, protestando sempre:

- É um assalto! Chuchu por aquele preço é um verdadeiro assalto!

 

Disponível em: <http://www.mundoidioma.8m.com/Cuentos/ASSALTO,%20Carlos%20Drumond%20de%20Andrade.htm>. Acesso em: 18 abr. 2014.
 

 

Atividade 2

 

Em seguida, o professor explicará que existem diferentes tipos de crônicas, quando analisamos o tom empregado pelo cronista, uma vez que encontramos crônicas mais voltadas para um tom humorístico, outras com um tom mais sentimental, outras são mais parecidas com "causos", nas quais o cronista discorre sobre algo inusitado que aconteceu durante uma situação do cotidiano.

 

Para que os alunos possam formalizar um pouco melhor essa tentativa de classificação das crônicas, mesmo que saibamos que essa classificação não é estanque, o professor apresentará aos os alunos a seguinte explicação de Marina Cabral,  publicada no portal brasilescola.com:

 

A Crônica

A crônica é um gênero que tem relação com a ideia de tempo e consiste no registro de fatos do cotidiano em linguagem literária, conotativa.

A origem da palavra crônica é grega, vem de chronos (tempo), é por isso que uma das características desse tipo de texto é o caráter contemporâneo.

A crônica pode receber diferentes classificações:

- a lírica, em que o autor relata com nostalgia e sentimentalismo;

- a humorística, em que o autor faz graça com o cotidiano;

- a crônica-ensaio, em que o cronista, ironicamente, tece uma crítica ao que acontece nas relações sociais e de poder;

- a filosófica, reflexão a partir de um fato ou evento;

- e jornalística, que apresenta aspectos particulares de notícias ou fatos, pode ser policial, esportiva, política etc.

 

Disponível em: <http://www.brasilescola.com/redacao/a-cronica.htm>. Acesso em: 18 abr. 2014.


 

Vale observar que, além dessa classificação, podemos citar também as crônicas metaliterárias, nas quais os cronistas escrevem sobre o próprio fazer literário, sobre a própria escrita.

 

O professor deverá ressaltar com os alunos que, para podermos classificar as crônicas lidas, conforme a classificação elencada, devemos observar alguns elementos linguísticos, dentre os quais, podemos citar:

 

  • escolha lexical (quais adjetivos, quais verbos, quais expressões foram usados);
  • tipo de texto predominante (descritivo, narrativo, dissertativo/argumentativo);
  • no caso de apresentar um narrador — lugar discursivo assumido pelo narrador (jovem, adulto, criança, escritor, pai de família, mulher, filha, etc.).

 

 

Atividade 3

 

Para conhecer um pouco melhor os tipos de crônica, o professor entregará uma apostila contendo as crônicas selecionadas, abaixo, e os alunos, em grupos pequenos (2 a 4 alunos),  realizarão a atividade  proposta a seguir:

 

Sobre cada uma das crônicas, responda:

 

  1. Trata-se de um texto predominante descritivo, narrativo ou dissertativo/argumentativo?

  2. Apresenta narrador? Se sim, a história é narrada em primeira ou terceira pessoa?

  3. No caso de apresentar um narrador, qual o lugar discursivo assumido pelo narrador (jovem, adulto, criança, escritor, pai de família, mulher, filha, etc.)?

  4. Como você classificaria essa crônica?

  5. Quais frases/trechos da crônica exemplificam melhor seu tom preponderante? (grife-os no texto ou transcreva-os abaixo)

 

Professor, sugere-se entregar apostilas com 2 ou 3 textos diferentes para cada grupo, para que, num segundo momento, os alunos possam apresentar as crônicas estudadas para os outros grupos.

 

Texto 1

 

 Queixa de defunto - Lima Barreto

 

Antônio da Conceição, natural desta cidade, residente que foi em vida, a Boca do Mato, no Méier, onde acaba de morrer, por meios que não posso tornar público, mandou-me a carta abaixo que é endereçada ao prefeito. Ei-la:

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Doutor Prefeito do Distrito Federal. Sou um pobre homem que em vida nunca deu trabalho às autoridades públicas nem a elas fez reclamação alguma. Nunca exerci ou pretendi exercer isso que se chama os direitos sagrados de cidadão. Nasci, vivi e morri modestamente, julgando sempre que o meu único dever era ser lustrador de móveis e admitir que os outros os tivessem para eu lustrar e eu não.

Não fui republicano, não fui florianista, não fui custodista, não fui hermista, não me meti em greves, nem em cousa alguma de reivindicações e revoltas; mas morri na santa paz do Senhor quase sem pecados e sem agonia.

Toda a minha vida de privações e necessidades era guiada pela esperança de gozar depois de minha morte um sossego, uma calma de vida que não sou capaz de descrever, mas que pressenti pelo pensamento, graças à doutrinação das seções católicas dos jornais.

Nunca fui ao espiritismo, nunca fui aos “bíblias”, nem a feiticeiros, e apesar de ter tido um filho que penou dez anos nas mãos dos médicos, nunca procurei macumbeiros nem médiuns.

Vivi uma vida santa e obedecendo às prédicas do Padre André do Santuário do Sagrado Coração de Maria, em Todos os Santos, conquanto as não entendesse bem por serem pronunciadas com toda eloquência em galego ou vasconço.

Segui-as, porém, com todo o rigor e humildade, e esperava gozar da mais dúlcida paz depois de minha morte. Morri afinal um dia destes. Não descrevo as cerimônias porque são muito conhecidas e os meus parentes e amigos deixaram-me sinceramente porque eu não deixava dinheiro algum. E bom, meu caro Senhor Doutor Prefeito, viver na pobreza, mas muito melhor é morrer nela. Não se levam para a cova maldições dos parentes e amigos deserdados; só carregamos lamentações e bênçãos daqueles a quem não pagamos mais a casa.

Foi o que aconteceu comigo e estava certo de ir direitinho para o Céu, quando, por culpa do Senhor e da Repartição que o Senhor dirige, tive que ir para o inferno penar alguns anos ainda.

Embora a pena seja leve, eu me amolei, por não ter contribuído para ela de forma alguma. A culpa é da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro que não cumpre os seus deveres, calçando convenientemente as ruas. Vamos ver por quê. Tendo sido enterrado no cemitério de Inhaúma e vindo o meu enterro do Méier, o coche e o acompanhamento tiveram que atravessar em toda a extensão a Rua José Bonifácio, em Todos os Santos.

Esta rua foi calçada há perto de cinquenta anos a macadame e nunca mais foi o seu calçamento substituído. Há caldeirões de todas as profundidades e larguras, por ela afora. Dessa forma, um pobre defunto que vai dentro do caixão em cima de um coche que por ela rola sofre o diabo. De uma feita um até, após um trambolhão do carro mortuário, saltou do esquife, vivinho da silva, tendo ressuscitado com o susto.

Comigo não aconteceu isso, mas o balanço violento do coche machucou-me muito e cheguei diante de São Pedro cheio de arranhaduras pelo corpo. O bom do velho santo interpelou-me logo:

— Que diabo é isto? Você está todo machucado! Tinham-me dito que você era bem-comportado — como é então que você arranjou isso? Brigou depois de morto?

Expliquei-lhe, mas não me quis atender e mandou que me fosse purificar um pouco no inferno.

Está aí como, meu caro Senhor Doutor Prefeito, ainda estou penando por sua culpa, embora tenha tido vida a mais santa possível.

Sou, etc., etc.

Posso garantir a fidelidade da cópia a aguardar com paciência as providências da municipalidade.

 

Disponível em: <http://www.releituras.com/limabarreto_queixa.asp>. Acesso em: 18 abr. 2014.

 

Texto 2

 

Aula de Inglês — Rubem Braga

 

—  Is this an elephant?

Minha tendência imediata foi responder que não; mas a gente não deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar que lancei à professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e tinha o ar de quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei com a maior atenção o objeto que ela me apresentava.

Não tinha nenhuma tromba visível, de onde uma pessoa leviana poderia concluir às pressas que não se tratava de um elefante. Mas se tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso deixa ele de ser um elefante; mesmo que morra em consequência da brutal operação, continua a ser um elefante; continua, pois um elefante morto é, em princípio, tão elefante como qualquer outro. Refletindo nisso, lembrei-me de averiguar se aquilo tinha quatro patas, quatro grossas patas, como costumam ter os elefantes. Não tinha. Tampouco consegui descobrir o pequeno rabo que caracteriza o grande animal e que, às vezes, como já notei em um circo, ele costuma abanar com uma graça infantil.

Terminadas as minhas observações, voltei-me para a professora e disse convincentemente:

—  No, it's not!

Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora de minha resposta a havia deixado apreensiva. Imediatamente perguntou:

—  Is it a book?

Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha vida no meio de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de distinguir um livro a primeira vista no meio de quaisquer outros objetos, sejam eles garrafas, tijolos ou cerejas maduras — sejam quais forem. Aquilo não era um livro, e mesmo supondo que houvesse livros encadernados em louça, aquilo não seria um deles: não parecia de modo algum um livro. Minha resposta demorou no máximo dois segundos:

—  No, it's not!

Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita — mas só por alguns segundos. Aquela mulher era um desses espíritos insaciáveis que estão sempre a se propor questões, e se debruçam com uma curiosidade aflita sobre a natureza das coisas.

—  Is it a handkerchief?

Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer a verdade, não sabia o que poderia ser um handkerchief; talvez fosse hipoteca... Não, hipoteca não. Por que haveria de ser hipoteca? Handkerchief! Era uma palavra sem a menor sombra de dúvida antipática; talvez fosse chefe de serviço ou relógio de pulso ou ainda, e muito provavelmente, enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido:

—  No, it's not!

Minhas palavras soaram alto, com certa violência, pois me repugnava admitir que aquilo ou qualquer outra coisa nos meus arredores pudesse ser um handkerchief.

Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez, porém, a pergunta foi precedida de um certo olhar em que havia uma luz de malícia, uma espécie de insinuação, um longínquo toque de desafio. Sua voz era mais lenta que das outras vezes; não sou completamente ignorante em psicologia feminina, e antes dela abrir a boca eu já tinha a certeza de que se tratava de uma palavra decisiva.

—  Is it an ash-tray?

Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro lugar porque eu sei o que é um ash-tray: um ash-tray é um cinzeiro. Em segundo lugar porque, fitando o objeto que ela me apresentava, notei uma extraordinária semelhança entre ele e um ash-tray.  Era um objeto de louça de forma oval, com cerca de 13 centímetros de comprimento.

As bordas eram da altura aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias curvas — duas ou três — na parte superior. Na depressão central, uma espécie de bacia delimitada por essas bordas, havia um pequeno pedaço de cigarro fumado (uma bagana) e, aqui e ali, cinzas esparsas, além de um palito de fósforos já riscado. Respondi:

—  Yes!

O que sucedeu então foi indescritível. A boa senhora teve o rosto completamente iluminado por onda de alegria; os olhos brilhavam — vitória! vitória! — e um largo sorriso desabrochou rapidamente nos lábios havia pouco franzidos pela meditação triste e inquieta.  Ergueu-se um pouco da cadeira e não se pôde impedir de estender o braço e me bater no ombro, ao mesmo tempo que exclamava, muito excitada:

—  Very well!  Very well!

Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no lidar com mulheres. A efusão com que ela festejava minha vitória me perturbou; tive um susto, senti vergonha e muito orgulho.

Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo firme e ao ver, na vitrine de uma loja,alguns belos cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de comprar um. Certamente teria entabulado uma longa conversação com o embaixador britânico, se o encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da boca e lhe diria:

--  It's not an ash-tray!

E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu sabia falar inglês, pois deve ser sempre agradável a um embaixador ver que sua língua natal começa a ser versada pelas pessoas de boa-fé do país junto a cujo governo é acreditado.

 

Disponível em: <http://www.releituras.com/rubembraga_aula.asp>. Acesso em: 18 abr. 2014.

 

Texto 3

 

Os discos voadores — Rachel de Queiroz

 


     Eu por mim acredito. Por que não acreditaria? Nada vejo que justifique a descrença. Acredito em tudo. Que têm 15 metros de diâmetro, que são feitos de um metal desconhecido, brilhante como prata polida, que se compõem de três círculos concêntricos dos quais só um — o do meio — gira, fazendo o engenho mover-se; acredito que deixam um rastro luminoso por onde andam — decerto a poeira fosforescente dos mundos siderais que percorreram. E acredito, principalmente, que sejam pilotados por homúnculos de meio metro de estatura, macrocéfalos, horrendos, vindos sabe Deus de que planeta, Marte, Vênus ou Saturno.


     Ah, acredito. Por que não seria verdade? Todo o mundo os tem visto, no Oriente e no Ocidente, no Pacífico e no Atlântico, nas costas da Califórnia, no Peru e no Amazonas, em Maceió, no Uruguai; e até mesmo aqui no Rio teve um cavalheiro que os viu durante 45 minutos; viu-os com os seus olhos que a terra há de comer, se me permitem a expressão, e por sinal chamou a radiopatrulha, no que se mostrou homem muitíssimo avisado.


     Ilusão coletiva uma conversa. Também a bomba voadora dizia-se que era ilusão coletiva. O povo sabe muito bem onde põe os olhos e os jornais contam muito mais verdades do que supõe o ingênuo público, viciado a acreditar em desmentidos. Se tanta gente tem visto discos voadores, é porque há discos voadores. E afinal de contas, neste mundo de aparência,  quem é que pode distinguir da realidade a dita aparência, e até onde se pode afirmar que uma coisa é concreta ou é ilusão dos sentidos? Arco-íris também é ilusão dos sentidos e neste mesmo instante lá está um, brilhando no céu, entre as nuvens molhadas, luminoso e autêntico como um corpo vivo.


     Eu creio nos discos e tenho medo deles. Sei muitíssimo bem que são o sinal positivo do fim do mundo. Se até está nos livros, se foi profetizado há muito tempo! E por que não seria o fim do mundo? Quais são os nossos méritos assim tão grandes para nos defenderem da catástrofe? Os dez justos que faltaram a Sodoma, com razão ainda maior, nos faltariam a nós.


    Quem tiver os seus pecados trate de ir-se arrependendo que a hora chegou e chegou feia. Quem não viu o que tinha de ver, procure olhar e fartar os olhos; quem não amou ame depressa, quem não se vingou se vingue. O tempo urge — faça-se o que é mister ser feito, que o relógio já bateu. O mundo vai acabar-se.


     Pelo menos o nosso mundo. Outro pode nascer dos nossos destroços, mas há de ser um mundo diferente, povoado sabe Deus por quem — só o não será pelos nossos netos, que esses não chegarão sequer a formar-se nas entranhas das nossas filhas. E estas estarão mortas conosco, belas, inocentes e malfadadas, perdendo a chama da vida antes de a poderem passar adiante.


     O mundo que virá depois há de ser deles, que já nos vigiam e já preparam o caminho. Então vocês não compreendem, irmãos, que esses discos misteriosos que pairam no alto, librando-se no ar como um gavião peneirando em cima da presa, pairam no alto e depois vão-se embora são os olheiros deles, são os quintas-colunas, os esculcas das multidões de homenzinhos de cabeça grande que estão destinados a ser os nossos senhores? Depois dos observadores, chegarão os exércitos com armas tão assombrosas que, perto delas, a bomba de hidrogênio do presidente Truman é como uma ronqueira de São João. E que idade terão atingido eles, se já minguaram assim no tamanho e cresceram tanto a cabeça?


     Como hão de estar apurados, refinados, 90% de matéria bruta — e não tão bruta assim, já que pode ser tão pouca? Que poderemos nós contra eles, lerdos gigantes microcéfalos, mal saídos da grosseira idade do ferro e gatinhando ainda na infância da era atômica?

 

     Que pensarão de nós, vendo-nos tão atrasados, tão primitivos, tão irremediavelmente presos à carne e às suas misérias, divertindo-nos barbaramente com guerras de selvagens, usando engenhos grosseiros de metal rude e brutas explosões de pólvora e nitroglicerina?


     Ah, tenho medo, tenho medo. Que será de nós quando eles do céu se despencarem aos cachos, tão estranhos e terríveis, implacáveis na convicção cega do divino direito da sua sobrevivência à custa da nossa? De que modo nos irão destruir ou de que meios usarão para nos escravizar — como animais de força bruta ao seu serviço? E como serão eles — transparentes, gelatinosos, todo o músculo e osso apurado em matéria nobre, cérebros andantes, quase sem vísceras, talvez libertos das baixas necessidades da comida e do repouso? E terão um peito capaz de piedade, terão olhos capazes de ver além da nossa grotesca feiúra, da nossa maldade e da nossa imperfeição?


     Quem sabe são anjos; e virão destruir como os anjos destroem, sem ódio, sem prazer na carnificina, apenas cumprindo ordens mais altas, com a sua espada de fogo, coração feito de diamante, que nada empana, mas nada amolece. Contudo, também podem ter evoluído apenas na direção da besta, e como bestas na quinta-essência do aperfeiçoamento serão ferozes e implacáveis — serão os próprios descendentes do Leviatã.


     Cuidado que eles estão chegando. Primeiro foi o aviso, mas em breve já não haverá avisos. Hão de baixar aos milhares e aos milhões, pequeninos e atrevidos, hão de conhecer todos os segredos, decerto se multiplicam em massa, ao sabor das vãs necessidades, produzem guerreiros e chefes ao seu gosto, terão aprendido o processo de reduzir a infância a apenas alguns meses, produzindo por sistema adiantadíssimo adultos temporões de corpo transparente e cabeça grande, no mesmo espaço de tempo que nós gastamos para fabricar um automóvel.


     Ah, os que não acreditam! Ah, os que zombam! Ah, os sábios que espiam nos seus estúpidos telescópios e negam o que o olho nu enxerga! Medem as estrelas com suas réguas, e depois vêm-nos dizer que não há perigo, que nos assustamos com simples meteoro. Isso mesmo deviam declarar os pajés das tribos americanas aos guerreiros assustados que pela primeira vez avistaram as asas das caravelas subindo no horizonte. São pássaros, são raios de sol — são sonhos dos olhos! E assim os brancos chegaram, e acharam os guerreiros desprevenidos e inermes. O mesmo sucederá conosco. É mais cômodo duvidar, é muito mais fácil afirmar que tudo é engano e mentira.


   E, enquanto isso, os discos voadores partem aos milhares das suas bases de céu além, e cortam zumbindo o éter vazio, e escolhem para o seu pouso o que há de mais bonito e mais sedutor no mundo — a Califórnia, o golfo do México, a Itália, as praias amenas do Atlântico Sul...

 

Disponível em: <http://varaldeleitura.blogspot.com.br/2013/07/cronica-amor-de-rachel-de-queiroz.html>. Acesso em: 18 abr. 2014.

 

Texto 4

 

Paulo Mendes Campos - Ser Brotinho

 

Ser brotinho não é viver em um píncaro azulado: é muito mais! Ser brotinho é sorrir bastante dos homens e rir interminavelmente das mulheres, rir como se o ridículo, visível ou invisível, provocasse uma tosse de riso irresistível.

Ser brotinho é não usar pintura alguma, às vezes, e ficar de cara lambida, os cabelos desarrumados como se ventasse forte, o corpo todo apagado dentro de um vestido tão de propósito sem graça, mas lançando fogo pelos olhos. Ser brotinho é lançar fogo pelos olhos.

É viver a tarde inteira, em uma atitude esquemática, a contemplar o teto, só para poder contar depois que ficou a tarde inteira olhando para cima, sem pensar em nada. É passar um dia todo descalça no apartamento da amiga comendo comida de lata e cortar o dedo. Ser brotinho é ainda possuir vitrola própria e perambular pelas ruas do bairro com um ar sonso-vagaroso, abraçada a uma porção de elepês coloridos. É dizer a palavra feia precisamente no instante em que essa palavra se faz imprescindível e tão inteligente e natural. É também falar legal e bárbaro com um timbre tão por cima das vãs agitações humanas, uma inflexão tão certa de que tudo neste mundo passa depressa e não tem a menor importância.

Ser brotinho é poder usar óculos como se fosse enfeite, como um adjetivo para o rosto e para o espírito. É esvaziar o sentido das coisas que transbordam de sentido, mas é também dar sentido de repente ao vácuo absoluto. É aguardar com paciência e frieza o momento exato de vingar-se da má amiga. É ter a bolsa cheia de pedacinhos de papel, recados que os anacolutos tornam misteriosos, anotações criptográficas sobre o tributo da natureza feminina, uma cédula de dois cruzeiros com uma sentença hermética escrita a batom, toda uma biografia esparsa que pode ser atirada de súbito ao vento que passa. Ser brotinho é a inclinação do momento.

É telefonar muito, estendida no chão. É querer ser rapaz de vez em quando só para vaguear sozinha de madrugada pelas ruas da cidade. Achar muito bonito um homem muito feio; achar tão simpática uma senhora tão antipática. É fumar quase um maço de cigarros na sacada do apartamento, pensando coisas brancas, pretas, vermelhas, amarelas.

Ser brotinho é comparar o amigo do pai a um pincel de barba, e a gente vai ver está certo: o amigo do pai parece um pincel de barba. É sentir uma vontade doida de tomar banho de mar de noite e sem roupa, completamente. É ficar eufórica à vista de uma cascata. Falar inglês sem saber verbos irregulares. É ter comprado na feira um vestidinho gozado e bacanérrimo.

É ainda ser brotinho chegar em casa ensopada de chuva, úmida camélia, e dizer para a mãe que veio andando devagar para molhar-se mais. É ter saído um dia com uma rosa vermelha na mão, e todo mundo pensou com piedade que ela era uma louca varrida. É ir sempre ao cinema mas com um jeito de quem não espera mais nada desta vida. É ter uma vez bebido dois gins, quatro uísques, cinco taças de champanha e uma de cinzano sem sentir nada, mas ter outra vez bebido só um cálice de vinho do Porto e ter dado um vexame modelo grande. É o dom de falar sobre futebol e política como se o presente fosse passado, e vice-versa.

Ser brotinho é atravessar de ponta a ponta o salão da festa com uma indiferença mortal pelas mulheres presentes e ausentes. Ter estudado ballet e desistido, apesar de tantos telefonemas de Madame Saint-Quentin. Ter trazido para casa um gatinho magro que miava de fome e ter aberto uma lata de salmão para o coitado. Mas o bichinho comeu o salmão e morreu. É ficar pasmada no escuro da varanda sem contar para ninguém a miserável traição. Amanhecer chorando, anoitecer dançando. É manter o ritmo na melodia dissonante. Usar o mais caro perfume de blusa grossa e blue-jeans. Ter horror de gente morta, ladrão dentro de casa, fantasmas e baratas. Ter compaixão de um só mendigo entre todos os outros mendigos da Terra. Permanecer apaixonada a eternidade de um mês por um violinista estrangeiro de quinta ordem. Eventualmente, ser brotinho é como se não fosse, sentindo-se quase a cair do galho, de tão amadurecida em todo o seu ser. É fazer marcação cerrada sobre a presunção incomensurável dos homens. Tomar uma pose, ora de soneto moderno, ora de minueto, sem que se dissipe a unidade essencial. É policiar parentes, amigos, mestres e mestras com um ar songamonga de quem nada vê, nada ouve, nada fala.

Ser brotinho é adorar. Adorar o impossível. Ser brotinho é detestar. Detestar o possível. É acordar ao meio-dia com uma cara horrível, comer somente e lentamente uma fruta meio verde, e ficar de pijama telefonando até a hora do jantar, e não jantar, e ir devorar um sanduíche americano na esquina, tão estranha é a vida sobre a Terra.
 

Disponível em: <http://www.releituras.com/pmcampos_broto.asp>. Acesso em: 18 abr. 2014.

 

Texto 5

 

Millôr Fernandes - Poeminha: Última Vontade

 

Ser Gagá não é viver apenas nos idos do passado: é muito mais! É saber que todos os amigos já morreram e os que teimam em viver, são entrevados. É sorrir, interminavelmente, não por necessidade interior, mas porque a boca não fecha ou a dentadura é maior do que a arcada.


Ser Gagá é ficar pensando o dia inteiro em como seria bom ter trinta anos ou, vá lá, quarenta, ou mesmo, ó Deus, sessenta! É ficar olhando os brotinhos que passeiam, com o olhar esclerosado, numa inútil esperança. É ficar aposentado o dia inteiro, olhando no vazio, pensando em morrer logo, e sair subitamente, andando a meia hora que o separa dos cem metros da esquina, porque é preciso resistir. É dobrar o jornal encabulado, quando chega alguém jovem da família, mas ficar olhando, de soslaio, para os íntimos da coluna funerária. Ser Gagá é saber todos os mortos inscritos no Time, em Milestones. Não é saber o Who is who, mas os WHEN. É só pensar em comer, como na infância. E em certo dia passar fome as vinte e quatro horas, só de melancolia. É, na hora mais ativa do mais veloz Bang-Bang, descobrir, lá no terceiro plano, uni ator antigo, do cinema mudo, e sentir no peito a punhalada. É surpreender, subitamente, um olhar irônico que trocam dois brotinhos, que, no entanto, o ouvem seriamente. É querer aderir à bossa nova, falar “Sossega Leão” e morrer de vergonha ao perceber o fora. É não querer, não querer, mas cada dia ficar mais necessitado de amparo do que outrora. É ter estado em Paris, em 19. É descobrir, de repente, um buraco na roupa e dar graças a Deus, por ser na roupa.



Ser Gagá é sentir plenamente que tudo que se leu, que se aprendeu, que se viu e se viveu não vale nada diante do que estua. Ser Gagá é estar sempre na iminência de ouvir em plena rua: “Olha o tarado!” É ficar contente em ver Chaplin e Picasso como os “mais charmosos” de sessenta! É chamar de menina à quarentona. É ter uma esperança senil nos cientistas. É reparar, nos mais jovens, o imperceptível sinal de decadência. É ficar olhando o detalhe, nos amigos; a lentigem nas mãos, o cabelo que afina, a pele que vai desidratando. Ser Gagá é o orgulho vão de ainda ter cabelo e poucos brancos! A vaidade tola de não ter barriga; a felicidade de ter dentes próprios. E fazer grandes planos quinquenais que espantam os jovens que acham cinco anos a própria eternidade, mas que o Gagá sabe que voam como voaram tantos, tantos, tantos.



É se apegar, desesperadamente, pelo tremendo impulso da existência, aos filhos, aos netos e aos bisnetos, embora saiba que eles não o querem, que a convivência com eles é apenas parte e total do egoísmo vital que o enterra. É sentir que agora, outra vez, está bem de saúde. É sentir a saúde ocasional. É carregar o corpo o tempo todo. É sentir o caixão no próprio corpo. É saber que já não há quem tenha prazer em lhe acarinhar a pele. É já não ter prazer em passar a mão na própria pele. É esquecer de coisas importantes e lembrar, sem saber por que, um gosto, um calor, uma palavra há tempos esquecidos.



Ser Gagá é procurar com afã a importância do cargo para de novo ser solicitado, embora pelo cargo. É sentir que nada do que faça, espantoso que seja, terá a importância do feito de outro homem, nos inícios da vida. Ser Gagá é quando dormir tarde se torna uma loucura, resgatada em feroz resfriado que dura uma semana. É ter sabido francês, e esquecido. É já não jogar xadrez como outrora! É olhar o retrato amarelado e lembrar que fotógrafo usava magnésio. É dizer, como um feito, que ainda lê sem óculos. É ouvir que alguém diz, quando passa na rua: “inda está firme!” É ficar galante e baboseiro na terceira taça de champanha. É casar com uma mulher mais jovem e querer dar logo ao mundo a inegável prova de um filhinho.

 


Ser Gagá é, num esforço mortal, aceitar tudo que inventam, todas as ideias, as modas, a música, o ritmo de vida, mas não deixar de dizer numa ironia profunda e amargurada. “Eu não entendo”. É sentir de repente o isolamento. É ficar egoísta, e amedrontado. É não ter vez e nem misericórdia.



Ser Gagá é fogo. Ou melhor, é muito frio.

 

Disponível em: <http://www.releituras.com/millor_sergaga.asp>. Acesso em: 18 abr. 2014.

 


Texto 6

 

Rubem Braga - Meu Ideal Seria Escrever...

 


Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse -- "ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria -- "mas essa história é mesmo muito engraçada!".



Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.



Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse -- e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse -- "por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!" . E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.



E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago -- mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina".



E quando todos me perguntassem -- "mas de onde é que você tirou essa história?" -- eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma história...".



E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.



Disponível em: <http://www.releituras.com/rubembraga_meuideal.asp>. Acesso em: 18 abr. 2014.

 

Texto 7

 

Salvo pelo Flamengo - Paulo Mendes Campos

 

Desde garotinho que não sou Flamengo, mas tenho pelo clube da Gávea um dívida séria, que torno pública neste escrito. Em 1956, passei uma semana em Estocolmo, hospedado em um hotel chamado Aston. Era primavera, pelo menos teoricamente, havia um congresso internacional na cidade, os hotéis estavam lotados, criando contratempos para turistas do interior ou estrangeiros. A recepção do Aston, por exemplo, vivia sempre cheia de gente implorando por um quarto ou discutindo a respeito de uma reserva feita por telegrama ou telefone.



Estava há dois ou três dias na cidade, quando me pediram para receber um brasileiro e encaminhá-lo ao hotel, onde lhe fora reservado de fato um apartamento. Era uma hora da madrugada quando entramos no hotel e me encaminhei até o empregado do balcão, dando-lhe o nome do meu amigo e lembrando-lhe a reserva. O funcionário, homem de uns sessenta anos e de uma honesta cara escandinava, tomou uma atitude estranha e difusa, que a princípio me surpreendeu e ia acabando por me indignar: ele não confirmava a existência da reserva, nem deixava de confirmar.



Como começasse a protestar, vi que seu rosto tomava uma expressão aflita; eu entendendo cada vez menos. Quando passei a exigir o apartamento com alguma energia, o homem, trêmulo, nervoso, pediu-me desculpas e trouxe afinal a ficha de identificação. Foi aí que vi levantar-se da penumbra de uma saleta contígua o gigante.



Se o leitor conhece um homem forte, mas muito forte mesmo, imagine uma pessoa duas vezes mais forte, e terá uma vaga idéia desse gigante que veio andando até nós, botando ódio pelos olhos e espetacularmente bêbado. O monstro passou por mim com desprezo e, agarrando o empregado pela gola do uniforme, entrou a sacudi-lo e insultá-lo em sueco. Às vezes, éramos arrolados nessa invectiva, pois o gigante nos apontava enquanto dizia coisas.



O empregado, demonstrando possuir um bom instinto de conservação, deixava-se sacolejar à vontade. Rosnando assustadoramente, o ciclope foi sentar-se de novo na saleta, onde só então dei pela presença de outro sujeito, também bêbado, mas sinistramente silencioso. É hoje, pensei. Sair do meu Brasilzinho tão bom, fazer uma viagem imensa, para ser trucidado sem explicação por um bêbado.



O fato de ser na Suécia, onde arbitrários atos de violência não são comuns, ainda tornava mais absurdo, um absurdo existencialista, o meu triste fim. Indaguei do empregado o que se passava. Ficou mudo. Insisti na pergunta, e ele, sussurrando desamparadamente, explicou-me que o gigante estava a pensar: primeiro, que não conseguira vaga no hotel por ser sueco e estar embriagado; segundo, que nós conseguíramos por ser americanos, norte- americanos.



Ora, se meu amigo de fato era meio ruivo, seu jeitão era mineiro; quanto a mim, se fosse americano, só poderia ser filho de portugueses. Por outro lado, o meu inglês amarrado não deixava a menor dúvida sobre a questão de ser ou não ser americano. Só mesmo um sueco bêbado em uma madrugada de neve e vento iria supor que fôssemos americanos. Mas agora era o próprio gigante que bradava para nós com sarcasmo e ira: - American! American!

 

Fiquei um pouco mais esperançoso, acreditando que ele falasse inglês, e disse-lhe, exagerando minha alegria e meu orgulho por isso, que não éramos americanos coisa nenhuma, éramos brasileiros. Não entendeu ou talvez pensou que estivéssemos covardemente a renegar a nossa pátria, voltando a vociferar, em um esforço lingüístico que contraía todos os músculos de seu rosto: - American! Dollar! No like!



As palavras em si significavam pouco, mas a maneira de exprimi-las era de um eloqüência que teria destruído Catilina muito mais depressa que os discursos de Cícero. Durante alguns minutos mantivemos os dois uma polêmica oratória nestes termos:


- American!


- No, brazilian!


- American!


- Brazilian!


Essa versátil discussão ia levar-me ao abismo, quando de súbito me pareceu que a palavra “brazilian” havia penetrado por fim em sua testa granítica. Descontraindo os músculos, o gigante me perguntou:
- Brazil?! No american? Brazil?


Não tinha certeza se ele estava me gozando, mas sua expressão era tão estranhamente deslumbrada e infantil, que afirmei cheio de entusiasmo:


- Yes, Brazil!


Ele se levantou, cambaleou, aproximou-se, apontou meu amigo:


- Brazil?


- Brazil, Brazil.


Veio chegando, sorrindo, em pleno estado de graça, e gritou com alma, como se saudasse o nascimento de um mundo novo:


- Flamengo!! Flamengo!!


Imediatamente, o gigante entrou em transe e começou a fazer problemáticas firulas com uma bola imaginária, mas dando a entender cabalmente o quanto ele admirava (admirava é pouco: o quanto ele amava) o malabarismo dos nossos jogadores.



O gigante se desencantara, virando menino. A certa altura, depois de fazer um passe de letra, parou e confessou-me com um orgulho caloroso:


- I Flamengo! I Rubens!


Ele não era sueco, não era gigante, não era bêbado, não era um ex-campeão de hóquei (conforme soube depois), era Flamengo, era Rubens. Depois cutucou-me o peito, tomado de perigosa dúvida:

 

- You! Flamengo?


Que o Botafogo me perdoe, mas era um caso de vida ou de morte, e também gritei descaradamente:


- Flamengo! Yes! Flamengo! The greatest one!

 

Disponível em: <http://www.velhosamigos.com.br/AutoresCelebres/PauloMendesCampos/paulomendescampos.html#salvo>. Acesso em: 18 abr. 2014.

 

Texto 8

 

Um idoso na fila do Detran — Zuenir Ventura

 

"O senhor aqui é idoso", gritava a senhora para o guarda, no meio da confusão na porta do Detran da Avenida Presidente Vargas, apontando com o dedo o tal "senhor". Como ninguém protestasse, o policial abriu o caminho para que o velhinho enfim passasse à frente de todo mundo para buscar a sua carteira.



Olhei em volta e procurei com os olhos 0 velhinho, mas nada. De repente, percebi que o "idoso" que a dama solidária queria proteger do empurra-empurra não era outro senão eu.



Até hoje não me refiz do choque, eu que já tinha me acostumado a vários e traumáticos ritos de passagem para a maturidade: dos 40, quando em crise se entra pela primeira vez nos "entra"; dos 50, quando, deprimido, salte que jamais vai se fazer outros 50 (a gente acha que pode chegar aos 80, mas aos 100?); e dos 60, quando um eufemismo diz que a gente entrou na "terceira idade". Nunca passou pela minha cabeça que houvesse uma outra passagem, um outro marco, aos 65 anos. E, muito menos, nunca achei que viesse a ser chamado, tão cedo, de "idoso", ainda mais numa fila do Detran.



Na hora, tive vontade de pedir à tal senhora que falasse mais baixo. Na verdade, tive vontade mesmo foi de lhe dizer: "idoso é o senhor seu pai. O que mais irritava era a ausência total de hesitação ou dúvida. Como é que ela tinha tanta certeza? Que ousadia! Quem lhe garantia que eu tinha 65 anos, se nem pediu pra ver minha identidade? E 0 guarda paspalhão, por que não criou um caso, exigindo prova e documentos? Será que era tão evidente assim? Como além de idoso eu era um recém-operado, acabei aceitando ser colocado pela porta adentro. Mas confesso que furei a fila sonhando com a massa gritando, revoltada: "esse coroa tá furando a fila! Ele não é idoso! Manda ele lá pro fim!" Mas que nada, nem um pio.


O silêncio de aprovação aumentava o sentimento de que eu era ao mesmo tempo privilegiado e vítima — do tempo. Me lembrei da manhã em que acordei fazendo 60 anos: "Isso é uma sacanagem comigo", me disse, "eu não mereço." Há poucos dias, ao revelar minha idade, uma jovem universitária reagira assim: "Mas ninguém lhe dá isso." Respondi que, em matéria de idade, o triste é que ninguém precisa dar para você ter. De qualquer maneira, era um gentil consolo da linda jovem. Ali na porta do Detran, nem isso, nenhuma alma caridosa para me "dar" um pouco menos.



Subi e a mocinha da mesa de informações apontou para os balcões 15 e 16, onde havia um cartaz avisando: "Gestantes, deficientes físicos e pessoas idosas." Hesitei um pouco e ela, já impaciente, perguntou: "O senhor não tem mais de 65 anos? Não é idoso?"



— Não, sou gestante — tive vontade de responder, mas percebi que não carregava nenhum sinal aparente de que tinha amamentado ou estava prestes a amamentar alguém. Saí resmungando: "não tenho mais, tenho só 65 anos."



O ridículo, a partir de uma certa idade, é como você fica avaro em matéria de tempo: briga por causa de um mês, de um dia. "Você nasceu no dia 14, eu sou do dia 15", já ouvi essa discussão.



Enquanto espero ser chamado, vou tentando me lembrar quem me faz companhia nesse triste transe. Ai, se não me falha a memória — e essa é a segunda coisa que mais falha nessa idade —, me lembro que Fernando Henrique, Maluf e Chico Anysio estariam sentados ali comigo. Por associação de idéias, ou de idades, vou recordando também que só no jornalismo, entre companheiros de geração, há um respeitável time dos que não entram mais em fila do Detran, ou estão quase não entrando: Ziraldo, Dines, Gullar, Evandro Carlos, Milton Coelho, Janio de Freitas (Lemos, Cony, Barreto, Armando e Figueiró já andam de graça em ônibus há um bom tempo). Sei que devo estar cometendo injustiça com um ou com outro — de ano, meses ou dias —, e eles vão ficar bravos. Mas não perdem por esperar: é questão de tempo.



Ah, sim, onde é que eu estava mesmo? "No Detran", diz uma voz. Ah, sim. "E o atendimento?" Ah, sim, está mais civilizado, há mais ordem e limpeza. Mas mesmo sem entrar em fila passa-se um dia para renovar a carteira. Pelo menos alguma coisa se renova nessa idade.

 

Disponível em: <http://www.releituras.com/zventura_idoso.asp>. Acesso em: 18 abr. 2014.

 

Texto 9

 

Conversa de pai e filha — Antônio Maria

 

— Pai, eu tenho um namorado.


Pai, que ouve isto da filha mocinha, pela primeira vez, sente uma dor muito grande. Todo sangue lhe sobe à cabeça, e o chão do mundo roda sob seus pés. Ele pensava, até então, que só a filha dos outros tinha namorado. A sua tem, também. Um namorado presunçosamente homem, sem coração e sem ternura. Um rapazola, banal, que dominará sua filha. Que a beijará no cinema e lhe sentirá o corpo, no enleio da dança. Que lhe fará ciúmes de lágrimas e revolta; pior ainda, de submissão, enganando-a com outras mocinhas. Que, quando sentir os seus ciúmes, com toda certeza, lhe dirá o nome feio e, possivelmente, lhe torcerá o braço. E ela chorará, porque o braço lhe doerá. Mas ela o perdoará no mesmo momento ou, quem sabe, não chegará, sequer, a odiá-lo. E lhe dirá, com o braço doendo ainda: "Gosto de você, mais que de tudo, só de você." Mais que de tudo e mais que dele, o pai, que nunca lhe torceu o braço. Só de você é não gostar dele, o pai. E pensará, o pai, que esse porcaria de rapaz fará a filha mocinha beber whisky, e ela, que é mocinha, ficará tonta, com o estômago às voltas. Mas terá que sorrir. E tudo o que conseguir dela será, somente, para contar aos amigos, com quem permuta as gabolices sobre suas namoradas. Ah! O pai se toma da imensa vontade de abraçar-se à filha mocinha e pedir-lhe que não seja de ninguém. De abraçá-la e rogar a Deus que os mate, aos dois, assim, abraçados, ali mesmo, antes que torçam o bracinho da filha. Como é absurda e egoisticamente irracional amor de pai! Mais que ódio de fera. Ele sabe disso e se sente um coitado. Embora sem evitar que todos esses medos, iras e zelos passem por sua cabeça, tem que saber que sua filha é igual à filha dos outros; e, como a filha dos outros, será beijada na boca. Ele, o pai, beijou a filha dos outros. Disse-lhe, com ciúme, o nome feio. E torceu-lhe o braço, até doer. Nunca pensou que sua namorada fosse filha de ninguém. Ele, o pai, humanamente lamentável, lamentavelmente humano. Ele, o pai, tem, agora, que olhar a filha com o maior de todos os carinhos e sorrir-lhe um sorriso completo de bem-querer, para que ela, em nenhum momento, sinta que está sendo perdoada. Protegida, sim. Amada, muito mais. E, quando ela repetir que tem um namorado, dizer-lhe apenas:

 

— Queira bem a ele, minha filha.

 

Disponível em: <http://www.digestivocultural.com/blog/post.asp?codigo=224&titulo=Conversa_de_pai_e_filha>. Acesso em: 18 abr. 2014.

 

Atividade 4


Após terem lido as crônicas e respondido às questões sobre  elas, buscando identificar em qual classificação cada uma das crônicas pode ser inserida, os alunos deverão apresentar para os outros grupos quais crônicas foram lidas, qual a classificação foi dada pelo grupo a cada uma das crônicas e quais elementos linguísticos ajudaram a fazer tal classificação.

 

Módulo 2

 

pessoa

Disponível em: <http://envolverde.com.br/portal/wp-content/uploads/2012/01/pessoa-escrevendo.jpg>. Acesso em: 18 abr. 2014.

 

Atividade 1

 

Após terem tido contato com algumas crônicas de tons/classificações diferentes, os alunos deverão elaborar, em duplas, duas crônicas, que serão apresentadas primeiramente para os colegas de sala, mas que, em um segundo momento, poderão ser divulgadas na escola, por meio de murais ou outra forma de socialização com a comunidade escolar.

 

Atividade 2

 

Cada dupla deverá trocar de crônica com outra dupla, para que possam avaliar e dar sugestões sobre a crônica produzida pelos outros colegas. Para direcionar essa avaliação entre os alunos, o professor poderá pedir a eles que  respondam às questões seguintes, escrevendo abaixo do texto produzido pelos colegas:

 

  • Há uma relação bem estabelecida entre o título da crônica e o conteúdo da mesma? Se não, sugira outro título.
  • Qual o tom predominante nessa crônica?
  • A linguagem empregada está de acordo com o tom predominante?
  • Quais palavras ou expressões poderiam ser acrescentadas/alteradas para deixar a crônica mais interessante?

 

Atividade 3

 

Os alunos desfarão a troca das crônicas (cada dupla ficando novamente com a primeira versão da crônica, porém, agora, com os comentários da outra dupla) e farão as alterações que julgarem procedentes, levando em consideração a sugestão da outra dupla.

 

Após essa primeira alteração, os alunos entregarão as crônicas ao professor, que sugerirá eventuais modificações, para a redação final do texto a ser publicado/divulgado em meio à comunidade escolar.

Recursos Complementares

Para mais informações sobre os tipos de crônicas:

Disponível em: <http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/2226899>. Acesso em: 18 abr. 2014.

Avaliação

Os alunos poderão ser avaliados qualitativamente:

  • quanto ao trabalho de discussão nos grupos;
  • quanto ao envolvimento nos trabalhos em dupla.

O professor poderá avaliar quantitativamente as produções textuais dos alunos, observando:

  • correção gramatical e ortográfica;
  • pertencimento ao gênero crônica;
  • estruturação do texto visando imprimir um tom específico.
Opinião de quem acessou

Cinco estrelas 1 classificações

  • Cinco estrelas 1/1 - 100%
  • Quatro estrelas 0/1 - 0%
  • Três estrelas 0/1 - 0%
  • Duas estrelas 0/1 - 0%
  • Uma estrela 0/1 - 0%

Denuncie opiniões ou materiais indevidos!

Opiniões

Sem classificação.
REPORTAR ERROS
Encontrou algum erro? Descreva-o aqui e contribua para que as informações do Portal estejam sempre corretas.
CONTATO
Deixe sua mensagem para o Portal. Dúvidas, críticas e sugestões são sempre bem-vindas.