Portal do Governo Brasileiro
Início do Conteúdo
VISUALIZAR AULA
 


O papel dos diálogos nas crônicas

 

21/09/2014

Autor e Coautor(es)
ROGERIO DE CASTRO ANGELO
imagem do usuário

UBERLANDIA - MG ESC DE EDUCACAO BASICA

Eliana Dias, Lazuíta Goretti de Oliveira

Estrutura Curricular
Modalidade / Nível de Ensino Componente Curricular Tema
Ensino Fundamental Final Língua Portuguesa Língua oral e escrita: prática de produção de textos orais e escritos
Ensino Fundamental Final Língua Portuguesa Língua oral e escrita: prática de escuta e de leitura de textos
Ensino Fundamental Final Língua Portuguesa Análise linguística: organização estrutural dos enunciados
Ensino Fundamental Final Língua Portuguesa Análise linguística: modos de organização dos discursos
Ensino Médio Língua Portuguesa Gêneros discursivos e textuais: narrativo, argumentativo, descritivo, injuntivo, dialogal
Dados da Aula
O que o aluno poderá aprender com esta aula
 
  • Conhecer como os cronistas utilizam-se do discurso direto nas crônicas.
  • reconhecer qual(is) efeito(s) de sentido  do discurso direto em uma crônica.
Duração das atividades
3 aulas de 50 minutos cada
Conhecimentos prévios trabalhados pelo professor com o aluno
  • Os alunos devem ter familiaridade com sequências textuais no discurso direto e indireto;
  • Espera-se que os alunos já tenham tido contato com textos do gênero crônica.
Estratégias e recursos da aula

Estratégias

  • Leitura e discussão de textos.
  • Análise de textos literários.
  • Encenação de diálogos.
  • Produção textual.

 

Recursos:

  • Coletânea de textos.
  • Material explicativo sobre discurso direto e indireto.
  • Material para produção textual.

 

 

Módulo 1

 

Atividade 1

 

Primeiramente, o professor revisará com os alunos o que é discurso direto, indireto e indireto livre. Os alunos lerão o material explicativo (abaixo) e, em seguida, o professor deverá pedir para que os alunos deem exemplos de cada um dos tipos de discurso.

 

DISCURSO DIRETO, INDIRETO E INDIRETO LIVRE
 
Em um texto narrativo, o autor pode optar por três tipos de discurso: o discurso direto, o discurso indireto e o discurso indireto livre. Não necessariamente estes três discursos estão separados, eles podem aparecer juntos em um texto. Dependerá de quem o produziu.
 
Vejamos cada um deles:
 
Discurso Direto: Neste tipo de discurso as personagens ganham voz. É o que ocorre normalmente em diálogos. Isso permite que traços da fala e da personalidade das personagens sejam destacados e expostos no texto. O discurso direto reproduz fielmente as falas das personagens. Verbos como dizer, falar, perguntar, entre outros, servem para que as falas das personagens sejam introduzidas e elas ganhem vida, como em uma peça teatral.
 
Travessões, dois pontos, aspas e exclamações são muito comuns durante a reprodução das falas.
 
Ex.
 
“O Guaxinim está inquieto, mexe dum lado pra outro. Eis que suspira lá na língua dele - Chente! que vida dura esta de guaxinim do banhado!...”
 
“- Mano Poeta, se enganche na minha garupa!”
 
Discurso Indireto: O narrador conta a história e reproduz fala e reações das personagens. É escrito normalmente em terceira pessoa. Nesse caso, o narrador se utiliza de palavras suas para reproduzir aquilo que foi dito pela personagem.
 
Ex.
 
“Elisiário confessou que estava com sono.” (Machado de Assis)
 
“Fora preso pela manhã, logo ao erguer-se da cama, e, pelo cálculo aproximado do tempo, pois estava sem relógio e mesmo se o tivesse não poderia consultá-la à fraca luz da masmorra, imaginava podiam ser onze horas.” (Lima Barreto)
 
Discurso Indireto Livre: O texto é escrito em terceira pessoa e o narrador conta a história, mas as personagens têm voz própria, de acordo com a necessidade do autor de fazê-lo. Sendo assim é uma mistura dos outros dois tipos de discurso e as duas vozes se fundem.
 
Ex.
 
“Que vontade de voar lhe veio agora! Correu outra vez com a respiração presa. Já nem podia mais. Estava desanimado. Que pena! Houve um momento em que esteve quase... quase!”
 
 
“Retirou as asas e estraçalhou-a. Só tinham beleza. Entretanto, qualquer urubu... que raiva...” (Ana Maria Machado)
 
“D. Aurora sacudiu a cabeça e afastou o juízo temerário. Para que estar catando defeitos no próximo? Eram todos irmãos. Irmãos.” (Graciliano Ramos)
 
FONTE:
Celso Cunha in Gramática da Língua Portuguesa, 2ª edição.
 
Disponível em: < http://www.infoescola.com/redacao/tipos-de-discurso/>. Acesso em: 20 set. 2014.

 

Atividade 2

 

O professor entregará uma crônica aos alunos para que  verifiquem como são utilizados os tipos de discurso (principalmente direto e indireto) nas crônicas e quais os efeitos de sentido  obtido com a utilização de um ou outro tipo de discurso.

 

Os alunos poderão ler o texto em duplas, para facilitar a resolução das atividades de interpretação textual.

 

 

Dr Saraiva

Imagem publicada originalmente com o artigo "Diálogo Difícil". Disponível em: <http://www.novomilenio.inf.br/idioma/20010516.htm>. Acesso em: 19 set. 2014.

 

Diálogo difícil

Ivan Ângelo
 
 
Um homem do interior esbarra no jargão de uma secretária
 
 
Se ultrapassar a barreira representada por uma secretária, quando se quer falar com um executivo ao telefone, já é um pouco complicado para urbanos acostumados, que dirá quando vem alguém de longe, aonde não chegaram ainda certos truques do linguajar sempre polido daquelas que recebem dos patrões a ingrata missão de afastar em vez de aproximar.
 
- Financeira Saraiva, boa-tarde - diz a secretária.
 
- Boa-tarde, moça. O doutor Saraiva está?
 
- Quem gostaria?
 
Para ouvidos traquejados isso significa: pode estar ou pode não estar, depende de quem está falando. O verbo gostar no condicional joga o acesso ao doutor no terreno das possibilidades. Mas as palavras têm um sentido mais amplo do que julga quem faz uso delas no sentido particular.
 
- Gostaria não é bem o causo. Eu vim mais por precisão do que por gosto.
 
A resposta não servia a ela, que estava interessada no "quem" da pergunta. Já o interlocutor prestara maior atenção no verbo porque, para ele, essa era a palavra que fazia mais sentido na circunstância. A secretária voltou à pergunta dando ênfase na busca da informação que desejava:
 
- Mas quem gostaria?
 
- Gostaria de quê?
 
Para fugir do impasse, a secretária resolveu usar a língua geral:
 
- O que estou perguntando é qual o seu nome. Quer dizer: quem gostaria de falar com ele.
 
Aí, para o homem do interior, já era quase uma questão. E ele tornou, muito polido, mas marcando opinião:
 
- Uai, mas, se eu perguntei primeiro se o doutor Saraiva está, a senhora tinha de me responder primeiro, antes de rebater com outra pergunta, não é não? Eu penso assim.
 
- Como é que vou encaminhar o senhor sem saber o seu nome?
 
- Posso até dar o nome, mas eu não disse que queria falar com ele. Só perguntei se ele estava...
 
A secretária, com a objetividade da profissão, tentou contornar:
 
- O senhor quer falar com ele?
 
- Gostaria - ironizou o homem.
 
- Bom, então, por favor, o senhor pode me dizer o seu nome?
 
- Posso. É João Honorato.
 
Aí veio outra pergunta fatal das secretárias:
 
- De onde?
 
Para quem conhece os códigos, a pergunta significa: de qual empresa é o senhor, qual é o seu negócio? Para quem não conhece:
 
- De onde? Ah, sou de um lugar muito pequeninozinho perto de Barbacena, a senhora nunca deve ter ouvido falar: Desterro do Melo. Ouviu falar?
 
- Não, não ouvi - e lá veio outra pergunta do repertório: - É particular, senhor?
 
- Aí a senhora me pegou. O Desterro? Particular?
 
- O assunto, senhor, é particular?
 
- Ah, bom. Por enquanto, é. Daqui a pouco tá na boca do povo.
 
- Pode adiantá-lo, senhor, para eu estar passando para o doutor Saraiva?
 
- Não, eu mesmo passo.
 
A secretária vencida e grilada contatou o patrão, que atendeu na maior presteza ao ouvir o nome de João Honorato. Foi uma conversa longa. Pela porta entreaberta ela ouviu duas risadas, apelos, promessas, regateios, garantias, agradecimentos. Depois o doutor Saraiva veio até ela:
 
- Dona Regina, o senhor João Honorato está vindo aí. Disse que teve dificuldade de entender a senhora. Pelo amor de Deus, fale simples com ele, como se ele fosse a sua mãezinha, o seu avozinho. De hoje em diante, por favor, não mais "quem gostaria?", "de onde?", "estar passando", "qual é o assunto". Ele acha que quem telefona sabe o que quer e com quem quer.
 
- Mas quem é esse João Honorato?
 
- O rei da soja. Agora é nosso patrão: vendi minha parte para ele nesse fim de semana.
 
 
Publicado originalmente em 16 maio 2001. Revista Veja.
Disponível em: < http://www.novomilenio.inf.br/idioma/20010516.htm>. Acesso em: 19 set. 2014.
 
 
 
Sobre o texto "Diálogo difícil", responda:
 
  1. A que remete o título da crônica?
  2. Quem eram os envolvidos no diálogo que toma a maior parte da crônica?
  3. O cronista utiliza-se prioritariamente do discurso direto ou indireto?
  4. Há relação entre a forma como os personagens falam e o papel social que ocupam?
  5. Qual a função dos comentários que o narrador vai introduzindo em meio às falas dos personagens?
  6. Podemos considerar o diálogo entre os personagens principais da crônica como um jogo em que nenhum dos dois quer perder. Quem parece ter "ganhado" o diálogo?
  7. Como o diálogo entre o doutor Saraiva e a secretária, ao final da crônica, modificam a forma como interpretamos o primeiro diálogo?
  8. Se ao invés de reproduzir as falas dos personagens, o cronista optasse apenas por descrever o que a secretária Regina (a secretária) e João Honorato conversaram, teria o mesmo efeito do que os diálogos? Por quê?
  9. Que aspecto do cotidiano o cronista parece estar denunciando por meio da crônica "Diálogo difícil"?

 

 

Atividade 3

 
Os alunos deverão analisar, em duplas, mais três crônicas nas quais os cronistas optaram por mesclar a utilização do discurso direto e indireto.
Durante a leitura desses textos, os alunos deverão observar:
  • se o narrador comenta ou não as falas das personagens, direcionando a interpretação;
  • sobre o que os personagens dialogam; quais palavras ou expressões nos permitem identificar a relação entre os envolvidos no diálogo;
  • se o discurso direto permite  ou não ao leitor visualizar a cena, isto é, enxergá-la como se estivesse assistindo a ela.
 
Grande Edgar 
 
Luís Fernando Veríssimo
 
 
Já deve ter acontecido com você.
 
- Não está se lembrando de mim?
 
Você não está se lembrando dele. Procura, freneticamente, em todas as fichas armazenadas na memória o rosto dele e o nome correspondente, e não encontra. E não há tempo para procurar no arquivo desativado. Ele está ali, na sua frente, sorrindo, os olhos iluminados, antecipando a sua resposta. Lembra ou não lembra?
 
Neste ponto, você tem uma escolha. Há três caminhos a seguir.
 
Um, o curto, grosso e sincero.
 
- Não.
 
Você não está se lembrando dele e não tem por que esconder isso. O “Não” seco pode até insinuar uma reprimenda à pergunta. Não se faz uma pergunta assim, potencialmente embaraçosa, a ninguém, meu caro. Pelo menos não entre pessoas educadas. Você devia ter vergonha. Não me lembro de você e mesmo que lembrasse não diria. Passe bem.
 
Outro caminho, menos honesto mas igualmente razoável, é o da dissimulação.
 
- Não me diga. Você é o... o...
 
“Não me diga”, no caso, quer dizer “Me diga, me diga”. Você conta com a piedade dele e sabe que cedo ou tarde ele se identificará, para acabar com a sua agonia. Ou você pode dizer algo como:
 
- Desculpe deve ser a velhice, mas...
 
Este também é um apelo à piedade. Significa “Não torture um pobre desmemoriado, diga logo quem você é!” É uma maneira simpática de dizer que você não tem a menor ideia de quem ele é, mas que isso não se deve à insignificância dele e sim a uma deficiência de neurônios sua.
 
E há o terceiro caminho. O menos racional e recomendável. O que leva à tragédia e à ruína. E o que, naturalmente, você escolhe.
 
- Claro que estou me lembrando de você!
 
Você não quer magoá-lo, é isso. Há provas estatísticas que o desejo de não magoar os outros está na origem da maioria dos desastres sociais, mas você não quer que ele pense que passou pela sua vida sem deixar um vestígio sequer. E, mesmo, depois de dizer a frase não há como recuar. Você pulou no abismo. Seja o que Deus quiser. Você ainda arremata:
 
- Há quanto tempo!
 
Agora tudo dependerá da reação dele. Se for um calhorda, ele o desafiará.
 
- Então me diga quem eu sou.
 
Neste caso você não tem outra saída senão simular um ataque cardíaco e esperar, falsamente desacordado, que a ambulância venha salvá-lo. Mas ele pode ser misericordioso e dizer apenas:
 
- Pois é.
 
Ou:
 
- Bota tempo nisso.
 
Você ganhou tempo para pesquisar melhor a memória. Quem é esse cara, meu Deus? Enquanto resgata caixotes com fichas antigas do meio da poeira e das teias de aranha do fundo do cérebro, o mantém à distância com frases neutras como “jabs” verbais.
 
- Como cê tem passado?
 
- Bem, bem.
 
- Parece mentira.
 
- Puxa.
 
(Um colega da escola. Do serviço militar. Será um parente? Quem é esse cara, meu Deus?)
 
Ele está falando:
 
- Pensei que você não fosse me reconhecer...
 
- O que é isso?!
 
- Não, porque a gente às vezes se decepciona com as pessoas.
 
- E eu ia esquecer você? Logo você?
 
- As pessoas mudam. Sei lá.
 
- Que ideia!
 
(É o Ademar! Não, o Ademar já morreu. Você foi ao enterro dele. O... o... como era o nome dele? Tinha uma perna mecânica. Rezende! Mas como saber se ele tem uma perna mecânica? Você pode chutá-lo, amigavelmente. E se chutar a perna boa? Chuta as duas. “Que bom encontrar você!” e paf, chuta uma perna. “Que saudade!” e paf, chuta a outra. Quem é esse cara?)
 
- É incrível como a gente perde contato.
 
- É mesmo.
 
Uma tentativa. É um lance arriscado, mas nesses momentos deve-se ser audacioso.
 
- Cê tem visto alguém da velha turma?
 
- Só o Pontes.
 
- Velho Pontes!
 
(Pontes. Você conhece algum Pontes? Pelo menos agora tem um nome com o qual trabalhar. Uma segunda ficha para localizar no sótão. Pontes, Pontes...)
 
- Lembra do Croarê?
 
- Claro!
 
- Esse eu também encontro, às vezes, no tiro ao alvo.
 
- Velho Croarê!
 
(Croarê. Tiro ao alvo. Você não conhece nenhum Croarê e nunca fez tiro ao alvo. É inútil. As pistas não estão ajudando. Você decide esquecer toda a cautela e partir para um lance decisivo. Um lance de desespero. O último, antes de apelar para o enfarte.)
 
- Rezende...
 
- Quem?
 
Não é ele. Pelo menos isso está esclarecido.
 
- Não tinha um Rezende na turma?
 
- Não me lembro.
 
- Devo estar confundindo.
 
Silêncio. Você sente que está prestes a ser desmascarado.
 
- Sabe que a Ritinha casou?
 
- Não!
 
- Casou.
 
- Com quem?
 
- Acho que você não conheceu. O Bituca.
 
Você abandonou todos os escrúpulos. Ao diabo com a cautela. Já que o vexame é inevitável, que ele seja total, arrasador. Você está tomado por uma espécie de euforia terminal. De delírio do abismo. Como que não conhece o Bituca?
 
- Claro que conheci! Velho Bituca...
 
- Pois casaram...
 
É a sua chance. É a saída. Você passa ao ataque.
 
- E não me avisaram nada?!
 
- Bem...
 
- Não. Espera um pouquinho. Todas essas coisas acontecendo, a Ritinha casando com o Bituca, o Croarê dando tiro, e ninguém me avisa nada?!
 
- É que a gente perdeu contato e...
 
- Mas o meu nome está na lista, meu querido. Era só dar um telefonema. Mandar um convite.
 
- É...
 
- E você ainda achava que eu não ia reconhecer você. Vocês é que esqueceram de mim!
 
- Desculpe, Edgar. É que...
 
- Não desculpo não. Você tem razão. As pessoas mudam...
 
(Edgar. Ele chamou você de Edgar. Você não se chama Edgar. Ele confundiu você com outro. Ele também não tem a mínima ideia de quem você é. O melhor é acabar logo com isso. Aproveitar que ele está na defensiva. Olhar o relógio e fazer cara de “Já?!”)
 
- Tenho que ir. Olha, foi bom ver você, viu?
 
- Certo, Edgar. E desculpe, hein?
 
- O que é isso? Precisamos nos ver mais seguido.
 
- Isso.
 
- Reunir a velha turma.
 
- Certo.
 
- E olha, quando falar com a Ritinha e o Mutuca...
 
- Bituca.
 
- E o Bituca, diz que eu mandei um beijo. Tchau, hein?
 
- Tchau, Edgar!
 
Ao se afastar, você ainda ouve, satisfeito, ele dizer “Grande Edgar”. Mas jura que é a última vez que fará isso. Na próxima vez que alguém lhe perguntar “Você está me reconhecendo?” não dirá nem não. Sairá correndo.
 
 
Este texto está nos livros As mentiras que os homens contam, Comédias da vida privada e O suicida e O computador.
 
Disponível em: < http://pensador.uol.com.br/frase/Mzk3ODA0/>. Acesso em: 19 set. 2014.
 

 

Lixo
 
Luís Fernando Veríssimo
 
Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.
- Bom dia…
- Bom dia.
- A senhora é do 610.
- E o senhor do 612
- É.
- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente…
- Pois é…
- Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo…
- O meu quê?
- O seu lixo.
- Ah…
- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena…
- Na verdade sou só eu.
- Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.
- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar…
- Entendo.
- A senhora também…
- Me chame de você.
- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim…
- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha, às vezes sobra…
- A senhora… Você não tem família?
- Tenho, mas não aqui.
- No Espírito Santo.
- Como é que você sabe?
- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
- É. Mamãe escreve todas as semanas.
- Ela é professora?
- Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?
- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.
- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
- Pois é…
- No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.
- É.
- Más notícias?
- Meu pai. Morreu.
- Sinto muito.
- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.
- Foi por isso que você recomeçou a fumar?
- Como é que você sabe?
- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.
- É verdade. Mas consegui parar outra vez.
- Eu, graças a Deus, nunca fumei.
- Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo…
- Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.
- Você brigou com o namorado, certo?
- Isso você também descobriu no lixo?
- Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.
- É, chorei bastante, mas já passou.
- Mas hoje ainda tem uns lencinhos…
- É que eu estou com um pouco de coriza.
- Ah.
- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
- É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
- Namorada?
- Não.
- Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.
- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.
- Você já está analisando o meu lixo!
- Não posso negar que o seu lixo me interessou.
- Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.
- Não! Você viu meus poemas?
- Vi e gostei muito.
- Mas são muito ruins!
- Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.
- Se eu soubesse que você ia ler…
- Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
- Acho que não. Lixo é domínio público.
- Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que…
- Ontem, no seu lixo…
- O quê?
- Me enganei, ou eram cascas de camarão?
- Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.
- Eu adoro camarão.
- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode…
- Jantar juntos?
- É.
- Não quero dar trabalho.
- Trabalho nenhum.
- Vai sujar a sua cozinha?
- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.
- No seu lixo ou no meu?
 
Este texto está no livro O analista de Bagé.
Disponível em: < http://www.literal.com.br/luis-fernando-verissimo/por-ele-mesmo/lixo/>. Acesso em: 19 set. 2014.

 

O inferninho e o Gervásio

Stanislaw Ponte Preta

 

O cara que me contou esta história não conhece o Gervásio, nem se lembra quem lhe contou. Eu também não conheço o Gervásio nem quem teria contado a história ao cara que me contou, portanto, conto para vocês, mas logo vou explicando que não estou inventando nada.

Deu-se que o Gervásio tinha uma esposa desses ditas "amélias", embora gorda e com bastante saúde. Porém, Mme. Gervásio não era de sair de casa, nem de muitas badalações. Um cineminha de vem em quando e ela ficava satisfeita.

Mas deu-se também que o Gervásio fez 25 anos de casado e baixou-lhe um remorso meio chato. Afinal, nunca passeava, a coitada, e, diante do remoer de consciência, resolveu dar uma de bonzinho e, ao chegar em casa, naquele fim de tarde, anunciou:

- Mulher, mete um vestido melhorzinho que a gente vai jantar fora!

A mulher nem acreditou, mas pegou a promessa pelo rabo e foi se empetecar. Vestiu aquele do casamento da sobrinha e se mandou com o Gervásio para Copacabana. O jantar - prometia o Gervásio - seria da maior bacanidade.

Em chegando ao bairro que o Conselheiro Acácio chamaria de "floresta de cimento armado", começou o problema da escolha. O táxi rodava pelo asfalto e o Gervásio ia lembrando: vamos ao Nino's? Ao Bife de Ouro? Ao Chauteau? Ao Antonio's? Chalet Suisse? Le Bistrô?

A mulher - talvez por timidez - ia recusando um por um. Até que passaram em frente a um inferninho desses onde o diabo não entra para não ficar com complexo de inferioridade. A mulher olhou o letreiro e disse:

- Vamos jantar aqui.

- Aqui??? - estranhou Gervásio. - Mas isto é um inferninho!

- Não importa - disse a mulher. - Eu sempre tive curiosidade de ver como é um negócio desses por dentro.

O Gervásio ainda escabriu um pouquinho, dizendo que aquilo não era digno dela, mas a mulher ponderou que ele a deixara escolher e, por isso, era ali mesmo que queria jantar. Vocês compreendem, né? Mulher-família tem a maior curiosidade para saber como é que as outras se viram.

Saíram do táxi e, já na entrada, o porteiro do inferninho saiu-se com "Boa-noite, Dr. Gervásio" marotíssimo. Felizmente a mulher não ouviu. O pior foi lá dentro, o maitre d'hotel abriu-se no maior sorriso e perguntou:

- Dr. Gervásio, a mesa de sempre? - e foi logo se encaminhando para a mesa de pista. Gervásio enfiou o macuco no embornal e aguentou as pontas, ainda crédulo na inocência da mulher. Deu uma olhada para ela, assim como quem não quer nada, e não percebeu maiores complicações. Mas a insistência dos serviçais de inferninho é comovedora. Já estava o garçom ali ao pé do casal, perguntando:

- A senhorita deseja o quê? - e, para o Gervásio: - Para o senhor o uísque de sempre, não, Dr. Gervásio?

A mulher abriu a boca pela primeira vez, para dizer:

- O Gervásio hoje não vai beber. Só vai jantar.

- Perfeito - concordou o garçom. - Neste caso, o seu franguinho desossado, não é mesmo?

O Gervásio nem reagiu. Limitou-se a balançar a cabeça, num aceno afirmativo. E, depois, foi uma dureza engolir aquele frango que parecia feito de palha e matéria plástica. O ambiente foi ficando muito mais para urubu do que para colibri, principalmente depois que o pianista veio à mesa e perguntou se o Dr. Gervásio não queria dançar com sua dama "aquele samba reboladinho."

Daí para o fim, a única atitude daquele marido que fazia 25 anos de casado e comemorava o evento foi pagar a contar e sair de fininho. Na saída, o porteiro meteu outro "Boa-noite, Dr. Gervásio", e abriu a porta do primeiro táxi estacionado em frente.

Foi a dupla entrar na viatura e o motorista, numa solicitude de quem está acostumado a gorjetas gordas, querer saber:

- Para o hotel da Barra, doutor?

Aí ela engrossou de vez: - Seu moleque, seu vagabundo! Então é por isso que você se "esforça" tanto, fazendo extras, não é mesmo? Responde, palhaço!

O Gervásio quis tomar uma atitude digna, mas o motorista encostou o carro, que ainda não tinha andado cem metros, e lascou:

- Dr. Gervásio, não faça cerimônia: o senhor querendo eu dou umas bolachas nessa vagabunda, que ela se aquieta logo. 

 

Fonte: SANTOS, Joaquim Ferreira (Org.). As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, p. 126-128.

 

Atividade 4

 

O professor discutirá com os alunos sobre os textos lidos, ressaltando como os cronistas mesclam (ou não) o discurso direto e indireto e discutindo sobre qual situação do cotidiano serviu de inspiração para a produção de cada uma das crônicas.

 

Para que os alunos percebam como o discurso direto dá vida às personagens, fazendo com que consigamos visualizar os diálogos acontecendo, o professor agrupará os alunos, que deverão selecionar um dos textos trabalhados e fazer uma mini encenação, um aluno fazendo as vezes do narrador e outro aluno para cada personagem que dialoga na crônica.

 

 

Módulo 2

 

Atividade 1

 

Os alunos deverão selecionar uma das situações abaixo e criar uma crônica, que revele uma opinião pessoal do aluno/cronista sobre tal situação, mesclando o discurso direto e indireto.

  • amigos conversando num bar/festa; 
  • conversa com um terapeuta;
  • jovens conversando durante o recreio/intervalo de aulas;
  • mal entendido pelo telefone;
  • entrevista de estágio/emprego;
  • conversa entre médico e paciente;
  • assaltado conversando com assaltante;
  • assaltado fazendo B.O.;
  • negociação de compra e venda de um produto na loja;
  • conversa com namorado/namorada ciumenta;
  • conversa no barbeiro/cabeleireiro(a).

 

Atividade 2

 

Os alunos poderão socializar as produções textuais, lendo os textos para toda a classe e também divulgando os textos, após uma revisão textual, para toda a comunidade escolar, por meio de publicação  em um blog ou página de internet da escola.

Recursos Complementares

Sobre discurso direto e indireto.

Disponível em: <http://www.algosobre.com.br/redacao/discurso-direto-e-indireto.html>. Acesso em: 20 set. 2014.

 

Exemplo de crônica em que se mesclam discurso direto e indireto.

Disponível em: <http://www.releituras.com/drummond_jantar.asp>. Acesso em: 20 set. 2014.

Avaliação
Os alunos poderão ser avaliados qualitativamente quanto à participação:
  • nos trabalhos de discussão nas duplas;
  • durante as encenações dos textos;
  • nas discussões dos textos.
 
O professor poderá avaliar quantitativamente as produções textuais dos alunos, observando:
  • correção gramatical e ortográfica;
  • pertencimento ao gênero crônica;
  • atendimento aos temas propostos;
  • estruturação do texto e presença de discurso direto e indireto.
Opinião de quem acessou

Cinco estrelas 2 classificações

  • Cinco estrelas 2/2 - 100%
  • Quatro estrelas 0/2 - 0%
  • Três estrelas 0/2 - 0%
  • Duas estrelas 0/2 - 0%
  • Uma estrela 0/2 - 0%

Denuncie opiniões ou materiais indevidos!

Opiniões

Sem classificação.
REPORTAR ERROS
Encontrou algum erro? Descreva-o aqui e contribua para que as informações do Portal estejam sempre corretas.
CONTATO
Deixe sua mensagem para o Portal. Dúvidas, críticas e sugestões são sempre bem-vindas.