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O realismo fantástico

 

20/07/2013

Autor e Coautor(es)
WALLESKA BERNARDINO SILVA
imagem do usuário

UBERLANDIA - MG ESC DE EDUCACAO BASICA

Eliana Dias e Lazuíta Goretti de Oliveira

Estrutura Curricular
Modalidade / Nível de Ensino Componente Curricular Tema
Ensino Médio Literatura Representação literária: Natureza, função, organização e estrutura do texto literário
Ensino Fundamental Final Língua Portuguesa Língua oral e escrita: processos de interlocução
Ensino Médio Literatura Estudos literários: análise e reflexão
Ensino Fundamental Final Língua Portuguesa Análise linguística: processos de construção de significação
Ensino Médio Literatura Literatura brasileira, clássica e contemporânea: criações poéticas, dramáticas e ficcionais da cultura letrada
Educação de Jovens e Adultos - 2º ciclo Língua Portuguesa Linguagem escrita: leitura e produção de textos
Dados da Aula
O que o aluno poderá aprender com esta aula
  • Estabelecer relações de proximidade entre um conto do Realismo Fantástico e imagens que transcendam o real.
  • Compreender e identificar características do Realismo Fantástico.
  • Interpretar contos do Realismo Fantástico.
Duração das atividades
5 aulas de 50 minutos cada.
Conhecimentos prévios trabalhados pelo professor com o aluno
  • Texto expositivo.
  • Gênero conto.
Estratégias e recursos da aula

Estratégias e recursos:

  • quebra-cabeça;
  • discussão oral e coletiva;
  • leitura de artigo;
  • texto coletivo;
  • atividades de compreensão textual.

  

Módulo 1

Aula 1

Nessa atividade o objetivo é sensibilizar os alunos para a transcendência do real que marca o Realismo Fantástico.

O professor iniciará a aula, dividindo os alunos em grupos e pedindo-lhes que montem o quebra-cabeça cujas peças estão embaralhadas sobre mesas.  O grupo que  terminar primeiro terá de olhar para a imagem e propor oralmente explicações ou hipóteses para sua constituição.

Professor, para montar um quebra-cabeça, a partir das imagens abaixo, é fácil: basta imprimir as imagens coloridas, colá-las sobre um papel cartão (papel mais duro) e desenhar os traços que identificarão as peças do quebra-cabeça. Depois, basta recortar cada parte, conforme tracejados desenhados sobre a imagem.

Exemplo: 

Disponível em: http://4.bp.blogspot.com/-SqTnJxWVM24/UPIO5f2w92I/AAAAAAAAJyY/T8nkT7NIv2A/s1600/quebra+cabe%25C3%25A7a.png Acesso em: 15 jul. 2013.

 

Sugestão de imagens para compor o quebra-cabeças:

Disponível em: http://images1.wikia.nocookie.net/__cb20120621230843/literatura/es/images/6/63/REALISMO_MAGICO.jpg Acesso em: 15 jul. 2013.

 

 

Disponível em: https://encrypted-tbn3.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcRdw9KbdTp928Khbk1djb2_puVqywQHYY_wLMy6bkGCIrb3-76v Acesso em: 15 jul. 2013.

 

Disponível em: http://2.bp.blogspot.com/_r1pA9GzBQyQ/SUgbjbO-SzI/AAAAAAAABUI/3CWpkgauZ_Y/s400/275183671_6b294f5764_o.jpg Acesso em: 15 jul. 2013.

 

Disponível em: http://2.bp.blogspot.com/_r1pA9GzBQyQ/SUgcRJLPU9I/AAAAAAAABUo/6uZ3j4hakw4/s400/RGonsalves_FloodFences.jpg Acesso em: 15 jul. 2013.

 

Disponível em: http://sp7.fotolog.com/photo/7/61/5/bluelines/1250176848508_f.jpg Acesso em: 15 jul. 2013.

 

Disponível em: http://www.cyberartes.com.br/fotos/1586/2.jpg Acesso em: 15 jul. 2013.

 

Depois do jogo, no momento das hipóteses de sentido e de configuração das imagens, o professor deverá conduzir à turma à conclusão de que, em todas as imagens, acontece uma  fusão, apresentada naturalmente, entre o que é de ordem real e o que é de ordem irreal. Essa, grosso modo, é a concepção que ancora a escola literária Realismo Mágico ou Realismo Fantástico.

  

Atividade 2

O objetivo dessa atividade é permitir que os alunos estabeleçam relações de proximidade entre um conto do Realismo Fantástico e as imagens trabalhadas anteriormente.

 Os alunos deverão ler o texto de Ignácio Loyola Brandão: "O homem que viu o lagarto comer seu filho". Disponível em: http://www.releituras.com/ilbrandao_ohomem.asp Acesso em: 15 jul. 2013.

O homem que viu o lagarto comer seu filho

Ignácio de Loyola Brandão
para Ligia Sanchez



Era uma noite de terça-feira, e eles viam televisão deitados na cama. Quase uma da manhã, estava quente. Ele levantou-se para tomar água. A casa silenciosa, moravam num bairro tranquilo. Não havia ruídos, poucos carros. Ao passar pelo quarto das crianças, resolveu entrar. Empurrou a porta e encontrou o bicho comendo o menino mais velho, de três anos e meio. Era semelhante a um lagarto e, na penumbra, pareceu verde. Paralisado, não sabia se devia entrar e tentar assustar o animal, para que ele largasse a criança. Ou se devia recuar e pedir auxílio. Ele não sabia a força do bicho, só adivinhava que devia ser monstruosamente forte. Ao menos, forte demais para ele, franzino funcionário. E meio míope, ainda por cima. Se acendesse a luz do corredor, poderia verificar melhor que tipo de animal era. Mas não se tratava de identificar a raça e sim de salvar o menino. Ele tinha a impressão de que as duas pernas já tinham sido comidas, porque os lençóis estavam empapados de sangue. E a calça do pijama estava estraçalhada sob as garras horrendas do bicho repulsivo. Como é que uma coisa assim tinha entrado pela casa adentro? Bem que ele avisava a mulher para trancar portas. Ela esquecia, nunca usava o pega ladrão. Qualquer dia, em vez de um bicho, haveria um homem roubando tudo, a televisão colorida, o liquidificador, as coleções de livros com capas douradas, os abajures feitos com asas de borboletas, tão preciosos. Pensou em verificar as portas, se estavam trancadas. Porém, percebeu um movimento no animal, como se ele tentasse subir para a cama. Talvez tivesse comido mais um pedaço do menino. Precisava intervir. Como? Dando tapinhas nas costas do lagarto — não lagarto? Não tinha antas em casa e o cunhado sempre dizia que era coisa necessária. Nunca se sabia o que ia acontecer. Ali estava a prova. Queria ver a cara do cunhado, quando contasse. Não ia acreditar e ainda apostaria duas cervejas como tal animal não existia. Pode, um lagartão entrar em casa através de portas fechadas e comer crianças? Olhou bem. Comer crianças não era normal, nem certo. Devia ser uma visão alucinada qualquer. Não era, O bicho mastigava o que lhe pareceu um bracinho e o funcionário teve um instante de ternura ao pensar naqueles braços que o abraçavam tanto, quando chegava do emprego à noite. Urna faca de cozinha poderia ser útil? Mas quanto o bicho o deixaria se aproximar, sem perigo para ele, o homem? Tinha de impedir o lagarto de chegar à cabeça. Ao menos isso precisava salvar. Não conseguia dar um passo, sentia-se pregado à porta. Preocupava-se. Todavia não se sentia culpado. Era uma situação nova para ele. E apavorante. Como reagir diante de coisas novas e apavorantes? Não sabia. Preferia não ter visto o lagarto, encontrar a cama vazia, as roupas manchadas de sangue. Pensaria em sequestro ou coisas assim que lia nos jornais. Sequestro o intrigaria, uma vez que ganhava pouco mais de dois salários mínimos e não tinha acertado na loteria esportiva. Era apenas um funcionário dos correios que entregava cartas o dia todo e por isso tinha varizes nas pernas. Se gritasse, o lagarto iria embora? Continuou pensando nas coisas que podia fazer, até que a mulher chamou, uma, duas vezes. Depois ela gritou e ele recuou, sempre atento para saber quanto o bicho tinha comido do filho. À medida que recuou perdeu a visão do quarto. Sentindo-se aliviado, pelo que não via. A mulher chamava e ele pensou: o menino não chorou, não deve ter sofrido. Voltou ao quarto ainda com esperança de salvá-lo pela manhã e decidiu nada dizer à mulher. Apagaram a luz, ele se ajeitou, cochilou. Acordou sentindo um cheiro ruim e quando abriu os olhos viu sobre seu peito a pata, parecida com a do lagarto. Paralisado, não sabia se devia tentar assustar o animal, ou tentar sair da cama e pedir auxílio. Pelo peso da pata, o bicho devia ser monstruosamente forte. Ao menos, forte demais para ele, franzino funcionário. Aí se lembrou que tinha dois sacos de cartas a entregar, era época de Natal e havia muitos cartões das pessoas para outras pessoas dizendo que estava tudo bem, felicidades. Tinha que tirar este bicho de cima. Não, hoje não haveria entregas. Nem amanhã, por muito tempo. O lagarto estava com metade de sua perna dentro da boca.


O texto acima foi extraído do livro "Os melhores contos de Ignácio de Loyola Brandão", seleção de Deonísio da Silva, Global Editora — São Paulo, 1993, pág. 117.

Após leitura, o professor deverá propor aos alunos que estabeleçam relações entre as imagens do quebra-cabeça e o texto, respondendo oralmente às perguntas orientadoras da discussão:

  • o que há de comum em ambos os textos (verbal e imagético)?
  • de que forma os textos apresentam o que é da ordem da realidade? Justifique por meio da materialidade textual.
  • e como cada um apresenta o que é da ordem do irreal? Justifique por meio da materialidade textual.
  • o que cada um consegue provocar no interlocutor? Descrevam as sensações.

Para estender as análises do conto, o professor deverá destacar com os alunos que o texto foi escrito na época da Ditadura Militar, no Brasil. A partir dessa afirmação, pedirá aos alunos para tecerem analogias entre as relações de opressor e oprimido identificáveis no conto.

 

Módulo 2

Atividade 

O propósito é formalizar com os alunos a noção de Realismo Fantástico.

Após sensibilização inicial para a principal característica do Realismo Fantástico (transcendência do real), os alunos deverão ler uma análise do texto de Loyola Brandão feito por Juliana Loyola. A leitura visa à formalização do Realismo Fantástico.

Para facilitar a orientação da leitura, os alunos deverão responder ao questionário:

1. Como Juliana Loyola conceitua a corrente da literatura chamada de Realismo Fantástico?

2. Quais argumentos a autora utiliza para afirmar:

2.1 "O narrador é elemento mediador da relação texto-leitor"?

2.2 "O título do conto anuncia ação pretérita"?

2.3 "O contato com o estranho não define o lugar do leitor no texto"?

 

O realismo mágico de Ignácio de Loyola Brandão:

APROPUC-SP 04.02.09.  Escrito por Escrito por Juliana Loyola

Qua, 04 de Fevereiro de 2009 15:11 - Última atualização Seg, 16 de Fevereiro de 2009 17:28

 

"Empurrou a porta e encontrou o bicho

comendo o menino mais velho, de três anos e meio".

 

"O homem que viu o lagarto comer seu filho" é o título do conto de onde se origina a epígrafe. Publicado em Cadeiras Proibidas (1976), este conto de Ignácio de Loyola Brandão é um representante legítimo da contística desse autor, a cuja obra têm sido atribuídas fortes marcas do chamado realismo mágico ou realismo fantástico.

Característico na literatura latino-americana da segunda metade do século XX, o realismo mágico pode ser considerado, grosso modo, como uma atitude diante da realidade. É o próprio Ignácio de Loyola Brandão quem escreve a propósito de Cadeiras Proibidas:

Nos anos setenta, a situação brasileira me parecia bastante irreal. Ainda parece, hoje. No entanto, era diferente naquela época, com o regime ditatorial, a censura, o amordaçamento geral. Eu via os jornais contemplando uma realidade e estampando outra. Como jornalista, era testemunha de fatos que não podia imprimir. Portanto, observava a realidade sendo distorcida e uma outra realidade sendo fabricada, impingida. A percepção desta situação me levou à descoberta (óbvia) de que as coisas eram, mas não eram. E, desta maneira, na observação do dia a dia, foram surgindo as histórias que compõem Cadeiras Proibidas. (BRANDÃO, 1987 Apêndice)

Uma certa visão da realidade como naturalmente absurda ou insólita fica estampada nas obras desse gênero tipicamente latino-americano. Ao que parece, a proposta do realismo mágico não consiste em deformar o real ou mostrá-lo na sua transfiguração, mas em forjar, por meio da ficção, a condição do humano como algo naturalmente absurdo e, desta forma, propor um olhar de transcendência em relação ao real. Nesse caso, um dos aspectos da realidade referida diz respeito à presença aterrorizadora das ditaduras políticas em países da América Latina, na segunda metade do século XX.

 Os grandes temas sociais e políticos estão presentes nas obras do realismo mágico, mas seria equivocado considerá-lo apenas como um impulso à denúncia. É inegável que o gênero marcou uma significativa expansão da literatura latino-americana e que a levou ao reconhecimento internacional.

Voltemos ao conto de Loyola Brandão, "O homem que viu o lagarto comer seu filho", motivo de nossa leitura no presente trabalho. Conforme afirmou o próprio autor, este conto, juntamente com outros que compõem o livro Cadeiras Proibidas (1976), tem sua origem na observação do dia a dia. Num primeiro momento, podemos nos perguntar: como a observação do dia-a-dia pode levar alguém a configurar a cena de um homem que vê um lagarto enorme devorando seu filho? Uma forma de se chegar às respostas poderia ser a associação direta e simplória do animal ao regime militar (em plena vigência no Brasil da década de 70) e da criança (ou do próprio pai) à condição franzina dos dominados. O conto em questão vai muito além. Um olhar mais atento à forma como o autor compõe a narrativa permite observar que a fusão da realidade com elementos fantásticos transcende o âmbito do puramente ideológico. É o que pretendemos mostrar com uma rápida consideração sobre o papel do narrador como elemento mediador da relação texto-leitor (como efeito narrativo) nesse conto de Ignácio de Loyola Brandão.

Um lagarto que come-não-come: uma história que é-não-é

Numa madrugada quente, não conseguindo dormir, um homem se levanta para beber água. Ao passar pelo quarto dos filhos, resolve entrar. Empurra a porta e vê um lagarto devorando o filho mais velho. O animal já tinha metade da criança boca adentro. A visão horrenda desencadeia uma sequência de pensamentos; e a atitude que o personagem toma diante da cena é voltar ao seu quarto, sem nada fazer quanto ao menino que está sendo devorado. Acorda, horas depois, ele mesmo já metade dentro da boca do bicho.

Em linhas gerais, é essa a história de "O homem que viu o lagarto comer seu filho". O título do conto é marcado pela presença do artigo definido ("O homem", "o lagarto"). De certo modo, o título anuncia uma situação que, embora violenta e inverossímil (o conhecimento de mundo do leitor empírico não prevê a possibilidade desse acontecimento pelas proporções dos sujeitos envolvidos - "lagarto", "filho"), apresenta uma cena já composta e pretérita ("viu") contra a qual o leitor não tem muito a fazer. Entra no conto "desconfiado", mas sem "margem de manobra", o que também não o torna imune às oscilações que tomarão conta do ato da leitura ou da leitura como ato.

Narrativa curta, o contar (telling) prevalece por meio da atuação de um narrador não dramatizado, que não passa a palavra diretamente aos personagens. Aparentemente "senhor de si" e da situação narrativa, o narrador, nesse conto, ao contrário de favorecer uma sensação de certeza ao leitor quanto ao lugar que deve ocupar, parece ser o elemento responsável pela inscrição do paradoxo em que se vê instalado o leitor. Diante de um narrador firme e aparentemente imparcial, vai-se erguendo um leitor dividido entre o ser-não-ser da história - ela mesma expressão natural do insólito.

Era uma noite de terça-feira e eles viam televisão deitados na cama. Quase uma da manhã, estava quente. Ele levantou-se para tomar água. (...) Ao passar pelo quarto das crianças, resolveu entrar. Empurrou a porta e encontrou o bicho comendo o menino mais velho, de três anos e meio. Era semelhante a um lagarto e, na penumbra, pareceu verde. (BRANDÃO, 1993 p. 117)

Iniciada a narrativa, o leitor se vê, quase que de imediato, numa situação de profunda estranheza diante da absoluta inoperância de um pai face à visão de seu filho sendo devorado por um bicho terrível. O contato com o estranho, entretanto, não define (no sentido de tornar definitivo) o lugar do leitor no texto. Ou, se preferirmos, este parece ser o seu lugar - um território móvel, porque corresponde a uma experiência dupla e simultânea: a de estar diante de algo inverossímil, inaceitável segundo os parâmetros da realidade objetiva, ao mesmo tempo em que tudo é apresentado como natural e cotidiano pelo narrador, o que torna a sensação de estranheza (esta, sim) insólita. Este movimento em que se vê inserido o leitor é conduzido pelo narrador que, ao contar a história sem demonstrar nenhum estranhamento, contribui para a concretização do efeito exercido pelo conto - a vivência do insólito e do absurdo como algo corriqueiro, cotidiano.

O emprego do artigo definido ("... e encontrou o bicho comendo...") e o tom de naturalidade adotado para a descrição do animal ilustram bem a posição desse narrador que não hesita. Não hesita, mas conta algumas passagens da história a partir do ponto de vista de um passado imperfeito, não concluído, supostamente em continuidade, ou do futuro do pretérito, que pode expressar a dúvida, incerteza ou circunstância de condição.

"Franzino funcionário" dos correios, o personagem, tal como o leitor, também se encontra em posição de dupla experiência - a visão terrível e os pensamentos, as elucubrações que passam a ocupar sua mente. O narrador não assume, nesses momentos, o controle total da narrativa, deixando intervir o discurso indireto livre num movimento de fusão entre o discurso interior do personagem e o seu próprio discurso.

Bem que ele avisava a mulher para trancar as portas. Ela esquecia, nunca usava o pega ladrão. (p.117)
Qualquer dia, em vez de um bicho, haveria um homem roubando tudo, a televisão colorida, o liquidificador, as coleções de livros com capas douradas, os abajures feitos com asas de borboletas, tão preciosos. (p. 117)

Queria ver a cara do cunhado quando contasse. (p. 117) Devia ser uma visão alucinada qualquer. Não era. O bicho mastigava o que lhe pareceu um bracinho (...). (p. 118) Uma faca de cozinha poderia ser útil? (p. 118)

Preferia não ter visto o lagarto, encontrar a cama vazia, as roupas manchadas de sangue. (p. 118)

Ao assumir, em princípio, uma posição de quem está fora da história, o narrador procura atuar com extrema isenção quanto ao que conta. Intercala dois movimentos ao contar: um que apresenta aderência à realidade e outro que se afasta drasticamente dela. O narrador passa de uma informação passível de verossimilhança externa a outra completamente desconectada do mundo exterior. Mas ambas as informações recebem o mesmo grau de naturalidade, a mesma ênfase, o mesmo tom o que as funde numa mesma natureza embora sejam antagônicas.

Se acendesse a luz do corredor, poderia verificar melhor que tipo de animal era. Mas não se tratava de identificar a raça e sim de salvar o menino. Ele tinha a impressão de que as duas pernas já tinham sido comidas, porque os lençóis estavam empapados de sangue. E a calça do pijama estava estraçalhada sob as garras horrendas do bicho repulsivo. (BRANDÃO, 1993 p.117)

A atitude (ou a falta de atitude) do personagem é acompanhada pelo leitor real num misto de curiosidade e hesitação entre aceitar a história como uma proposta de mergulho no absurdo ou sair dela e ignorá-la completamente. Não cabe aqui discorrer sobre os resultados de uma ou de outra escolha pelo leitor empírico. O que nos parece relevante é que o conto chega ao fim e o leitor implícito permanece numa espécie de vivência ambígua. Esta também é a vivência do personagem. Assim que ele vê o filho sendo devorado pelo lagarto, fica imerso numa sequência de pensamentos que vão do real ao fantástico com extrema naturalidade. As incertezas do personagem são de natureza diversa das do leitor, mas parece evidente que a forma de narrar instala a situação paradoxal tanto no personagem quanto no leitor porque, dentre outros fatores, para o narrador tudo é encarado como acontecimento comum.

A naturalidade do narrador é causadora do efeito de estranheza no leitor. Ao não se mostrar assustado com a hesitação do personagem (salvar ou não o filho das garras e da boca do lagarto gigante), deixa o leitor em dúvida quanto ao julgamento dos fatos e de sua pertinência. E é esse o sentimento que define os limites do leitor no conto.

Podemos aqui retomar parte do depoimento de Loyola Brandão, citado no início deste trabalho, para considerar o próprio autor como um leitor de sua realidade, localizado na fronteira entre o crer e o não crer naquilo que ocorria no Brasil dos anos 70, tempo difícil da ditadura militar. Leitor que se faz escritor criativo, Brandão consegue, contudo, transcender a condição histórica imediata que lhe motiva o conto. Não fala de uma situação insólita para denunciá-la como tal. Seu texto não se reduz a um alerta sobre a situação política. O texto feito forma, materializa o insólito, presentifica-o, fazendo-o, frente ao leitor, sua única alternativa de permanência no conto. Dessa maneira, o leitor performatiza em si, por meio da leitura, a situação real a que o conto se liga historicamente. O texto de Brandão não fala sobre, mas antes ele é aquilo de que quer falar.

Ao representar uma realidade passível de flexibilização (o leitor migra de um universo real a outro fantástico e vice-versa), o texto torna relativo o que é dado como estabelecido. A condição humana, inexoravelmente definida pelos contornos de uma lógica realista, ganha, assim, uma dimensão maior de possibilidades pelo simples gesto de tornar-se duvidosa.

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Bibliografia

BRANDÃO, I. de L. Os melhores contos de Ignácio de Loyola Brandão. Seleção Deonísio da Silva. São Paulo: Global, 1993.

______. O homem do furo na mão e outras histórias. São Paulo, Ática, 1987.

CIPRO NETO, P. e INFANTE, U. Gramática da língua portuguesa. São Paulo: Scipione, 2003.

TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.

TURCHI, M. Z. As fronteiras do conto de José J. Veiga. In: Ciências e letras n. 34, p. 93-104, jul/dez, 2003.

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Juliana Loyola. Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Crítica Literária da PUC - SP

Disponível em: http://contosdobrasil.arteblog.com.br/219391/O-homem-que-viu-o-lagarto-comer-seu-filho-Ignacio-de-Loyola-Brandao/ Acesso em: 15 jul. 2013.

 

Após leitura, o professor deverá construir coletivamente com os alunos um texto expositivo para conceituar o Realismo Fantástico. Para contar com a colaboração de todos os alunos, o professor utilizará a ferramenta Twiddla - a lousa coletiva digital, disponível em: http://www.twiddla.com/ Acesso em: 15 jul. 2013.

 

Caso o professor julgue necessário, é possível recorrer a outros artigos (ver seção recursos complementares dessa aula) antes de recriar o conceito com os alunos. Ver artigo Realismo Mágico de Felipe Araújo, disponível em: http://www.infoescola.com/literatura/realismo-magico/ Acesso em: 15 jul. 2013.

Realismo Mágico

 

“Nele, a história emocional é realista, mesmo que os eventos que produzem essas emoções não o sejam.”

Lou Aronica, O editor norte-americano. 

Por Felipe Araújo

O surgimento da corrente literária denominada realismo mágico deu-se no começo do século XX. Também conhecida pelos nomes realismo fantástico ou realismo maravilhoso (Espanha), é considerada uma característica própria da literatura latino-americana.

A principal particularidade desta corrente literária é fundir o universo mágico à realidade, mostrando elementos irreais ou estranhos como algo habitual e corriqueiro. Além desta característica, o realismo mágico apresenta os elementos mágicos de forma intuitiva (sem explicação).

Um bom exemplo para um melhor entendimento do realismo mágico é o romance “Cem Anos de Solidão”, do colombiano Gabriel García Márquez. No livro, alguns personagens ficam surpresos ao se depararem com elementos fantásticos, mas agem como se aquilo pudesse acontecer naturalmente, como se fosse comum. Algumas descrições mágicas feitas por García Márquez são: a peste de insônia e de esquecimento que atinge as pessoas; a morte e retorno à vida de um cigano, uma mulher que sobe aos céus, entre outros.

Os escritores que representam o realismo mágico são Gabriel García Márquez (Colômbia), Manuel Scorza (Peru), Mario Vargas Llosa (Peru), Julio Cortázar (Argentina), Jorge Luis Borges (Argentina), Arturo Uslar Pietri (venezuelano considerado o pai do realismo mágico), Murilo Rubião (Brasil), José J. Veiga (Brasil), Alejo Carpentier (Cuba), Miguel Angel Astúrias (Guatemala) e Carlos Fuentes (México).

No contexto histórico, o realismo mágico surgiu em um dos períodos mais conturbados da América Latina. Entre as décadas de 60 e 70, os países latino-americanos passavam por processos ditatoriais. Desta forma, o realismo surge como uma forma de reação, utilizando o elemento mágico como reforço das palavras contrárias aos regimes dos ditadores. Outro aspecto que influenciou o realismo mágico foi a discrepância entre cultura da tecnologia e cultura da superstição que havia na América Latina naquela época.

O realismo mágico influenciou até mesmo escritores europeus. Segundo opinião de alguns críticos, a obra do italiano Ítalo Calvino, do tcheco Milan Kundera e do inglês Salman Rushdie sofreram forte influência da corrente latino-americana.

Fontes:
DACANAL, José Hildebrando. Realismo Mágico. Porto Alegre, Ed. Movimento, 1970.

 

Em linhas gerais, o texto coletivo deverá apresentar, dentre outras colocações:

REALISMO MÁGICO:

- Escola literária surgida no início do século XX.

- Resposta à literatura fantástica europeia.

- Forma de reação contra os regimes ditatoriais.

- Interesse em mostrar o irreal ou estranho como algo cotidiano e comum.

- Proporciona verossimilhança interna ao fantástico e ao irreal.

- Essa narrativa incorpora o “mistério” e uma “adivinhação (ou negação) poética da realidade”. Dessa maneira procura corrigir os limites do realismo puro. Daí ele sugerir “o que na falta de outra palavra poderia denominar-se um realismo mágico”.

- Coexistência de fantasia e realidade.

- A partir da aceitação da convenção dessa particular forma de discurso de ficção, nenhuma emoção é suscitada, nem nos personagens e, nem no leitor, em consequência.

 

Módulo 3

Atividade 

O objetivo dessa atividade é verificar a aprendizagem do conceito de Realismo Fantástico a partir da interpretação de um conto de Gabriel García Márquez.

 

Os alunos, após formalização do conceito da escola literária trabalhada, deverão interpretar outro texto do Realismo Fantástico. Agora, o nível de exigência do professor para com as respostas dos alunos deve ser maior em função do trabalho sistematizado realizado anteriormente. Sugestão de compreensão textual avaliativa.

A luz é como a água

 Gabriel García Márquez

 

No Natal os meninos tornaram a pedir um barco a remos.

– De acordo – disse o pai –, vamos comprá-lo quando voltarmos a Cartagena.

Totó, de nove anos, e Joel, de sete, estavam mais decididos do que seus pais achavam.

– Não – disseram em coro. – Precisamos dele agora e aqui.

– Para começar – disse a mãe –, aqui não há outras águas navegáveis além da que sai do chuveiro.

Tanto ela como o marido tinham razão. Na casa de Cartagena de Índias havia um pátio com um atracadouro sobre a baía e um refúgio para dois iates grandes. Em Madri, porém, viviam apertados no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Mas no final nem ele nem ela puderam dizer não, porque haviam prometido aos dois um barco a remos com sextante e bússola se ganhassem os louros do terceiro ano primário, e tinham ganhado. Assim sendo, o pai comprou tudo sem dizer nada à esposa, que era a mais renitente em pagar dívidas de jogo. Era um belo barco de alumínio com um fio dourado na linha de flutuação.

– O barco está na garagem – revelou o pai na hora do almoço. – O problema é que não tem jeito de trazê-lo pelo elevador ou pela escada, e na garagem não tem mais lugar.

No entanto, na tarde do sábado seguinte, os meninos convidaram seus colegas para carregar o barco pelas escadas, e conseguiram levá-lo até o quarto de empregada.

– Parabéns – disse o pai. – E agora?

– Agora, nada – disseram os meninos. – A única coisa que a gente queria era ter o barco no quarto, e pronto.

Na noite de quarta-feira, como em todas as quartas-feiras, os pais foram ao cinema. Os meninos, donos e senhores da casa, fecharam portas e janelas, e quebraram a lâmpada acesa de um lustre da sala. Um jorro de luz dourada e fresca feito água começou a sair da lâmpada quebrada, e deixaram correr até que o nível chegou a quatro palmos. Então desligaram a corrente, tiraram o barco, e navegaram com prazer entre as ilhas da casa.

Esta aventura fabulosa foi o resultado de uma leviandade minha quando participava de um seminário sobre a poesia dos utensílios domésticos. Totó me perguntou como era que a luz acendia só com a gente apertando um botão, e não tive coragem para pensar no assunto duas vezes.

– A luz é como a água – respondi. – A gente abre a torneira e sai.

E assim continuaram navegando nas noites de quarta-feira, aprendendo a mexer com o sextante e a bússola, até que os pais voltavam do cinema e os encontravam dormindo como anjos em terra firme. Meses depois, ansiosos por ir mais longe, pediram um equipamento de pesca submarina. Com tudo: máscaras, pés-de-pato, tanques e carabinas de ar comprimido.

– Já é ruim ter no quarto de empregada um barco a remos que não serve para nada – disse o pai. – Mas pior ainda é querer ter além disso equipamento de mergulho.

– E se ganharmos a gardênia de ouro do primeiro semestre? – perguntou Joel.

– Não – disse a mãe, assustada. – Chega. O pai reprovou sua intransigência.

– É que estes meninos não ganham nem um prego por cumprir seu dever – disse ela –, mas por um capricho são capazes de ganhar até a cadeira do professor.

No fim, os pais não disseram que sim ou que não. Mas Totó e Joel, que tinham sido os últimos nos dois anos anteriores, ganharam em julho as duas gardênias de ouro e o reconhecimento público do diretor. Naquela mesma tarde, sem que tivessem tornado a pedir, encontraram no quarto os equipamentos em seu invólucro original. De maneira que, na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam “O Último Tango em Paris”, encheram o apartamento até a altura de duas braças, mergulharam como tubarões mansos por baixo dos móveis e das camas, e resgataram do fundo da luz as coisas que durante anos tinham-se perdido na escuridão.

Na premiação final os irmãos foram aclamados como exemplo para a escola e ganharam diplomas de excelência. Desta vez não tiveram que pedir nada, porque os pais perguntaram o que queriam. E eles foram tão razoáveis que só quiseram uma festa em casa para os companheiros de classe. O pai, a sós com a mulher, estava radiante.

– É uma prova de maturidade – disse.

– Deus te ouça – respondeu a mãe.

Na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam “A Batalha de Argel”, as pessoas que passaram pela Castellana viram uma cascata de luz que caía de um velho edifício escondido entre as árvores. Saía pelas varandas, derramava-se em torrentes pela fachada, e formou um leito pela grande avenida numa correnteza dourada que iluminou a cidade até o Guadarrama. Chamados com urgência, os bombeiros forçaram a porta do quinto andar, e encontraram a casa coberta de luz até o teto. O sofá e as poltronas forradas de pele de leopardo flutuavam na sala a diferentes alturas, entre as garrafas do bar e o piano de cauda com seu xale de Manilha que se agitava com movimentos de asa a meia água como uma arraia de ouro. Os utensílios domésticos, na plenitude de sua poesia, voavam com suas próprias asas pelo céu da cozinha. Os instrumentos da banda de guerra, que os meninos usavam para dançar, flutuavam a esmo entre os peixes coloridos liberados do aquário da mãe, que eram os únicos que flutuavam vivos e felizes no vasto lago iluminado. No banheiro flutuavam as escovas de dentes de todos, os preservativos do pai, os potes de cremes e a dentadura de reserva da mãe, e o televisor da alcova principal flutuava de lado, ainda ligado no último episódio do filme da meia-noite proibido para menores. No final do corredor, flutuando entre duas águas, Totó estava sentado na popa do bote, agarrado aos remos e com a máscara no rosto, buscando o farol do porto até o momento em que houve ar nos tanques de oxigênio e Joel flutuava na proa buscando ainda a estrela polar com o sextante, e flutuavam pela casa inteira seus 37 companheiros de classe, eternizados no instante de fazer xixi no vaso de gerânios, de cantar o hino da escola com a letra mudada por versos de deboche contra o diretor, de beber às escondidas um copo de brandy da garrafa do pai. Pois haviam aberto tantas luzes ao mesmo tempo que a casa tinha transbordado, e o quarto ano elementar inteiro da escola de São João Hospitalário tinha se afogado no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Em Madri de Espanha, uma cidade remota de verões ardentes e ventos gelados, sem mar nem rio, e cujos aborígines de terra firme nunca foram mestres na ciência de navegar na luz.

Dezembro de 1978.

MÁRQUEZ, Gabriel García. A luz é como a água. In: MÁRQUEZ, G. G. Doze contos peregrinos. Rio de Janeiro: Record, 1992.

  1. Por que esse conto é entendido como pertencente à corrente literária Realismo Mágico? Não se esqueça de justificar sua resposta com trechos do texto.

  2. Qual o parágrafo que marca o início do que é incomum à realidade?

  3. Descreva psicologicamente a mãe de Totó e Joel. Para isso, primeiro, selecione um trecho do texto que revele atitudes da mãe; depois, comente-o. Deverão ser selecionados, pelo menos, dois trechos.

  4. É possível imaginar a condição social da família? Discorra sobre isso e comprove suas conclusões pelo texto com, pelo menos, três exemplos.

  5. Relacione o título do conto ao enredo, de modo que este (enredo) explique aquele (título).

  6. Mesmo sendo um conto que transcende o real, é possível verificar organização dos fatos no enredo. Comprove sua resposta.
Recursos Complementares

Artigos:

MACIEL. Nilto. O estudo da literatura fantástica no Brasil. Disponível em: http://www.letraselivros.com.br/livros/artigos/2772-o-estudo-da-literatura-fantastica-no-brasil-.html Acesso em: 15 jul. 2013.

PEDRA. Luis Cláudio Nogueira. A construção do fantástico na literatura. Disponível em: http://www.literaturafantastica.pro.br/index.php/pagina-inicial/147-a-construcao-do-fantastico-na-literatura.html Acesso em: 15 jul. 2013.

Revista:

Revista Brasileira de Literatura Fantástica. Disponível em: http://www.literaturafantastica.pro.br/ Acesso em:15 jul. 2013.

Coleção de contos:

MÁRQUEZ, Gabriel García. Doze contos peregrinos. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/5618233/Doze-Contos-Peregrinos-Gabriel-Garcia-Marquez Acesso em: 15 jul. 2013.

Avaliação

Nessa proposta, centralmente, os alunos deverão ser capazes de reconhecer marcas textuais que os autorizem a identificar o texto como pertencente à escola literária Realismo Fantástico. Dentre as atividades processuais, como as discussões coletivas e o texto coletivo, o aluno deverá revelar a apropriação do conhecimento por meio, especificamente, da última atividade de interpretação textual.

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