As atividades de casa precisam ser coerentes com as trabalhadas em sala de aula.
Autor:Arquivo pessoal
Pedagoga, com doutorado em educação, Tânia de Freitas Resende é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na área de Sociologia da Educação. Na mesma instituição, ela desempenha atividades como pesquisadora dos grupos Observatório Sociológico Família-Escola (Osfe) e Territórios, Educação Integral e Cidadania (Teia).
Para Tânia de Freitas Resende, cuja experiência na área de educação inclui também atividades de docência e coordenação pedagógica no ensino fundamental e trabalhos como analista e consultora educacional em instituições de ensino, o dever de casa pode potencializar o aprendizado ao estender o tempo de interação do sujeito com o objeto de conhecimento. Mas para isso, entende ela, deve ser adotado de forma criteriosa, bem orientado e bem conduzido.
Em sua opinião, as atividades de casa precisam ser coerentes com as que são trabalhadas em sala de aula, possibilitando que os alunos possam resolvê-las com autonomia: “o dever deve ser para o aluno e não para sua família”, salienta a professora.
Jornal do Professor – Qual é a função da lição de casa no aprendizado? Ela é importante em todos os níveis de aprendizagem?
Tânia de Freitas Resende - A “lição de casa” (ou “tarefa de casa”, “dever de casa”, “para casa”...) é uma prática pedagógica tradicional, à qual se tem atribuído diferentes funções: fixação, reforço ou consolidação da aprendizagem, formação de hábitos de estudo, desenvolvimento da autonomia, estreitamento das relações família-escola, transferência de aprendizagens para novas situações, vinculação entre aprendizagem escolar e vida cotidiana, dentre outras.
Portanto, a função da lição de casa não é algo definido “a priori”, independente da realidade educacional. Cabe a cada equipe pedagógica e a cada professor indagar-se a respeito da pertinência e da função da tarefa de casa no contexto específico em que atua, considerando diversas variáveis, tais como: o nível de aprendizagem e a idade dos alunos, suas condições de realização da atividade em casa, o tempo diário de jornada escolar, etc.. Por exemplo, faz sentido passar lições de casa para crianças da Educação Infantil, ainda não alfabetizadas? Se a escola é de tempo integral, ainda assim o aluno deve levar tarefas para casa?
O que deve ser evitado é justamente passar lições de casa apenas por uma tradição, sem ter clareza dos objetivos dessas atividades e sem explicitá-los para todos os envolvidos, especialmente os alunos e as famílias. Ou, pior ainda, prescrever tarefas de casa como uma “punição” para o aluno ou como uma mera obrigação que ele deve cumprir a fim de ser aprovado pelo professor.
Compreendo o dever de casa como um tempo de trabalho extra-aula que, se adotado criteriosamente, bem orientado e bem conduzido, pode potencializar o aprendizado ao estender o tempo de interação do sujeito com o objeto de conhecimento. Porém, em situação inversa – isto é, adotado sem critérios, mal orientado e mal conduzido -, o dever de casa pode gerar “efeitos colaterais”, contribuindo para a aversão aos estudos, a diminuição do interesse pela escola e pela aprendizagem, o acirramento das desigualdades educacionais.
JP – Existe uma quantidade adequada de dever de casa? Qual a duração máxima e a mínima que deve ser dedicada à lição de casa, diariamente?
TFR – Se dissemos que a necessidade e a pertinência de prescrever deveres de casa devem ser avaliadas em função de cada contexto, o mesmo podemos afirmar em relação à quantidade de tarefas. A duração das atividades a serem realizadas em casa – se é que elas vão ser propostas – deve ser definida em função da idade, do nível de aprendizagem, do ritmo de trabalho de cada aluno ou grupo de alunos, da duração da jornada letiva, das outras atividades realizadas pelos estudantes fora da escola, dentre outros fatores. Quando diversos professores lecionam para uma mesma turma, por exemplo, é fundamental que haja uma dosagem entre os vários deveres, a fim de possibilitar sua realização com qualidade. Além disso, pode ser que diferentes alunos de uma mesma turma precisem de diferentes períodos de tempo dedicados ao estudo em casa. O ideal é que esse seja um assunto discutido e deliberado conjuntamente pela equipe pedagógica envolvida com determinado grupo de alunos, ouvindo os próprios estudantes e também os pais ou responsáveis.
JP – Como tornar os deveres de casa mais criativos?
TFR – Inicialmente, gostaria de frisar que considero critério fundamental de qualidade de um dever, do ponto de vista pedagógico, não necessariamente a “criatividade” e sim a adequação ao objetivo pretendido e às necessidades de aprendizagem dos estudantes. Por exemplo, existem situações em que tarefas mais diretas, aparentemente pouco “criativas”, podem ser desejáveis; e podemos também encontrar deveres muito criativos, mas pouco adequados ao perfil dos alunos ou ao seu momento de aprendizagem. Feita essa ressalva, é claro que a repetição de atividades pouco significativas do ponto de vista do sujeito que aprende pode desestimular seu envolvimento com as tarefas.
Na busca de favorecer esse envolvimento, embora não haja fórmulas, existem diversas possibilidades interessantes, tais como: elaborar atividades diversificadas, que exijam diferentes tipos de raciocínios e habilidades; utilizar dados da realidade social, como reportagens (especialmente as que abordam temas de interesse dos alunos em cada faixa etária), folders, folhetos de supermercados e lojas, propagandas, etc.; propor textos e problemas relacionados a assuntos do momento, como competições esportivas, filmes e programas de sucesso, músicas; aproveitar recursos que as crianças tenham em casa e que despertem seu interesse, como televisão, rádio, computador, internet; propor tarefas vinculadas a projetos de investigação ou de empreendimento; prescrever atividades que envolvam enigmas, desafios, passatempos, vinculando-as aos conteúdos abordados em sala de aula.
JP – Além da adequação aos objetivos e da criatividade, quais os outros critérios para um bom trabalho envolvendo os deveres de casa?
TFR – As atividades de casa precisam ser coerentes com as que são trabalhadas em sala de aula. Como disse anteriormente, um dever de casa muito “criativo” pode se tornar um obstáculo difícil para os alunos, se as atividades em aula são sempre tradicionais, repetitivas. Isso não significa que as tarefas para casa devam repetir as que são feitas em sala, mas precisa haver certa coerência que garanta condições para que o estudante as resolva autonomamente. Este é outro critério de qualidade: o dever deve ser para o aluno e não para sua família. Considero importante buscar um equilíbrio em que a atividade não seja nem tão fácil que exclua qualquer desafio e nem tão distante do nível dos alunos que estes não consigam resolvê-la por si próprios.
Finalmente, mas não menos importante: a forma como os deveres são propostos e o modo como são abordados em sala de aula após sua realização constituem fatores cruciais para a qualidade do efeito que podem gerar. Nesses dois momentos – da prescrição dos deveres e da sua “correção” ou feedback – é que o professor indica para a turma de alunos, explícita e/ou implicitamente, qual o verdadeiro lugar das tarefas de casa em seu trabalho. Em ambos os momentos, a possibilidade de diálogo, negociações, esclarecimentos, estímulo, participação e debate constitui uma condição importante para dar significado efetivo às atividades, tirando-as do lugar de meras tarefas a serem cumpridas e fiscalizadas.
JP – Como deve ser a participação da família no dever de casa? Os pais devem ajudar? Como?
TFR – A participação da família – sua intensidade e sua forma – é outro aspecto que merece diálogo e negociação entre os interessados. De modo geral, considera-se desejável que as famílias acompanhem as atividades escolares dos filhos como um todo, que estimulem a realização das tarefas de casa, verifiquem seu cumprimento, incentivem o estudo e a leitura. Porém, não cabe esperar das famílias que assumam a função de ensino, que é da escola. Algumas famílias, as mais escolarizadas e culturalmente mais próximas da escola, tendem a desenvolver estratégias de acompanhamento que incluem a solução de dúvidas, a correção de erros, o auxílio para a pesquisa. Porém, é extremamente injusto, em relação à maioria das famílias brasileiras, com seus níveis de escolaridade ainda predominantemente baixos, esperar delas formas de apoio que não têm condições de oferecer. Isso sem falar de outras dificuldades, como as jornadas de trabalho extensas dos pais, a falta de recursos adequados para a realização dos deveres em casa, dentre outras. Assim, é importante que os educadores escolares procurem conhecer as famílias e negociar o tipo de ajuda que elas têm condição de proporcionar. Ajudas indiretas, na forma de incentivos e apoio à escola, também são importantes e muitas vezes estão mais próximas do campo de possibilidades da família.
JP – O que deve ser feito com os alunos que não costumam fazer as lições de casa? Eles devem ser penalizados? De que forma?
TFR – A pergunta me faz lembrar a história narrada por uma professora que vivia penalizando certo aluno que não fazia os deveres de casa, até que visitou o lugar onde ele morava e viu que não havia lá a mínima condição para o estudo. A família numerosa morava em um único cômodo que era, ao mesmo tempo, quarto, cozinha, sala, sem condições mínimas de organização ou higiene. Ou seja, antes de tudo é importante investigar o porquê do não cumprimento das lições. O estudante tem condições adequadas para fazer o dever em casa? Como é estruturado seu tempo fora da escola? Como é o seu ambiente familiar? O dever é adequado às suas necessidades de aprendizagem? Pode ser resolvido por ele autonomamente? Os deveres têm sido propostos e abordados em sala de aula de modo a favorecer o envolvimento dos alunos em sua realização?
Também é importante que no início de cada período letivo os diversos aspectos do processo pedagógico, incluindo os deveres de casa, sejam objeto de discussão entre os envolvidos – no caso, escola, alunos e famílias -, estabelecendo-se contratos claros que incluam a previsão do que acontecerá no caso de não cumprimento dos “combinados”. Assim, se o não cumprimento dos deveres efetivamente representar a quebra de um contrato significativo entre professor e alunos, as medidas previamente acordadas poderão ser tomadas de modo coerente e, portanto, educativo.
JP – Como deve ser feita a correção dos deveres de casa, a fim de garantir que os alunos fiquem com as respostas corretas?
TFR – A forma de correção dos deveres de casa vai variar de acordo com a faixa etária, o estilo do professor, as necessidades dos alunos. Em todos os casos, considero fundamental uma discussão coletiva, na sala de aula, das atividades que compõem a lição, pois é nesse momento que, além do esclarecimento de dúvidas, da socialização de conhecimentos, evidencia-se a importância do compromisso coletivo com as atividades propostas. Com alunos de faixas etárias maiores, essa correção coletiva pode ser suficiente – além de o professor, geralmente, trabalhar com uma grande quantidade de turmas, o que inviabiliza uma correção individual mais detalhada. Com alunos menores, pode ser interessante uma posterior verificação das tarefas pelo professor. Lembrando, porém, que o fundamental é que o professor avalie as diferentes atividades feitas em sala de aula e em casa pelo estudante, a fim de conhecer as necessidades de aprendizagem deste e propor atividades/estratégias/intervenções adequadas para ajudá-lo a avançar. Digo isso porque às vezes existe uma excessiva preocupação com a correção dos cadernos de dever de casa - que, no caso dos pais mais escolarizados, com frequência já são revistos por eles -, enquanto as atividades feitas em sala não merecem o mesmo tratamento. Talvez seja menos prioritário o aluno ficar com todas as respostas corretas, do que o professor conhecer o nível de aprendizagem atual do estudante, suas hipóteses e estratégias, e assim ter elementos para decidir quais os próximos passos a dar no processo pedagógico.
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