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JORNAL
Edição 14 - Filosofia na Escola
14/02/2009
 
ou

Professor da UFBA, João Carlos Salles: é necessário investir na boa formação dos professores

Autor:Arquivo pessoal


Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), João Carlos Salles Pires da Silva é doutor em filosofia pela Universidade de Campinas (SP). Presidente da Associação Nacional de Pós-graduação de Filosofia (Anpof), de outubro de 2002 a dezembro de 2006, coordena atualmente o comitê organizador do 17º Congresso da Sociedade Interamericana de Filosofia, que será realizado no Brasil, em 2013.

Consultor das novas Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, na área de filosofia, João Carlos Salles coordena o projeto Implantação da Disciplina Filosofia no Ensino Médio.

Na área de pesquisa desenvolve estudos sobre a necessidade e experiência em Wittgenstein, e comanda o grupo de pesquisa do CNPq de Filosofia Moderna e Contemporânea. Em entrevista ao Jornal do Professor, o professor falou da necessidade do ensino da filosofia e da importância de um investimento contínuo na boa formação dos professores.

 

Jornal do Professor – A disciplina de filosofia tem como propósito aprimorar o educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento cívico. Na sua opinião, qual metodologia é a mais adequada para atingir essa missão? Por quê?

João Carlos Salles – Enquanto disciplina, a filosofia é sobretudo teórica. Ela nos exige uma aproximação crítica a um universo conceitual, sendo reflexão, conhecimento de conhecimento. É claro que aspectos práticos lhe são essenciais, mas nosso olhar se aproxima e, ao mesmo tempo, se distancia do que é simples prática, de modo que possamos questionar o sentido ou o fundamento até mesmo de uma atitude, quando não de uma posição sobre a vida ou mesmo sobre a ciência.

Em sendo assim, será bem vinda uma abordagem metodológica que desloque o estudante de sua passividade, que o estimule a não simplesmente armazenar informações. É preciso, mais que isso, refletir sobre informações. Como porém fazer isso? Será que devemos começar do zero, apelando para o talento de cada um, para sua individualidade ou sua experiência mais recente?

Creio que tais aspectos devem ser levados em conta, mas é um aspecto característico de um ensino de filosofia, um que não seja mero livre pensar, provocar a reflexão com o auxílio de um legado específico, o da própria história da filosofia. Ela nos fornece um arsenal de problemas, nos quais em muito nos reconhecemos, enfrentando-os todavia com o auxílio de tramas conceituais e argumentativas próprias, que são nosso maior patrimônio. Com isso quero dizer que a aproximação à história da filosofia é um meio precioso para conduzir o aluno à perspectiva crítica e autônoma própria do trabalho filosófico, mas também que essa aproximação não se faz por acúmulo de dados, com os quais armazenaríamos datas e posições desconexas. Na medida do específico do ensino médio, tendo em conta a realidade desse nível do ensino, tendo em conta ainda os anseios do estudante, será adequada a metodologia que o faça reviver, com seus recursos, o espanto próprio da reflexão filosófica.

JP – De que maneira a metodologia indicada pelo senhor na primeira pergunta se compara às demais? Quais são suas qualidades e defeitos?

JCS – Mais que uma metodologia, sugeri uma postura e uma estratégia. Entretanto, alguns tendem a valorizar as vivências do aluno, os problemas mais imediatos, como se o legado da filosofia não fosse prioritário ou mesmo como se as reflexões dos filósofos fossem uma espécie de conhecimento mofado, coisa de eruditos afastados da vida. É como se pudessem filosofar sem a mediação da história da filosofia, dos textos filosóficos. Alguma mediação é sempre necessária. Não sendo a do patrimônio mesmo da filosofia, podem nossos alunos ser vítimas de uma atitude filosofante do professor, tornado então uma espécie de sábio, a espalhar gotas de sabedoria.

É preciso, para ser autônomo, compreender que o saber filosófico não é um dado qualquer, um que pode ser alcançado de uma vez por todas e mesmo sem esforço. Pior ainda, imaginar que seja acessível desconhecendo um longo diálogo com os grandes pensadores. O mero elogio à autonomia pode ser capcioso, sendo preciso lembrar que ela não é sinônimo de solidão, de fechamento, mas antes abertura para o diálogo, ou seja, capacidade de proporcionar nossas crenças a evidências disponíveis, segundo procedimentos de argumentação também eles passíveis de crítica. Esse é o preço de representarmos uma longa e sofisticada tradição.

JP – De forma geral, as aulas de filosofia tendem a ser expositivas e há um grande receio de que o ensino da filosofia possa acabar se tornando "enciclopédico". Quais cuidados os professores devem tomar para evitar isso?

JCS – As aulas de filosofia costumam, além de expositivas, ser tediosas. Ora, o problema não está em serem expositivas, mas em serem mal preparadas, sendo conduzidas por docentes que mal dominam os conteúdos e não se apaixonaram eles mesmos pela reflexão filosófica. Assim, não podem tornar as aulas instigantes e acabam procurando o caminho mais fácil, qual seja, o de tornar a aula uma soma infindável de dados, como se estivessem acumulando verbetes de alguma precária enciclopédia.

Certamente, o remédio contra tal situação não está simplesmente em tornar as aulas mais participativas. Esse pode ser apenas outro modo de exercício de uma farsa. O estudante é chamado a opinar sobre tudo e contra todos, ou ainda o professor passa filmes, lê poemas, como se assim pudesse despertar o aluno de alguma espécie de sono dogmático. Com isso, o tempo de aula passa. Só que, na maioria das vezes, a leitura de poemas não chega sequer a ser uma boa aula de literatura, quanto menos de filosofia. E também o filme, que poderia talvez lembrar algum tema filosófico, não é sequer compreendido em suas sutilezas, com o que não temos nem bom cinema nem boa filosofia.

O remédio então, para evitar o tédio, o enciclopedismo ou mesmo o democratismo é talvez bem mais simples. Não se trata de multiplicar tecnologias, mas se de investir continuadamente na boa formação dos professores. Afinal, como já disse o Celso Favaretto, o ensino de filosofia vale o que vale o pensamento daquele que ensina.

JP – Quais competências devem ser trabalhadas pelos professores durante a aula de filosofia?

JCS – Certamente, a leitura é uma competência a ser trabalhada na formação em filosofia. Isso, porém, só pode significar um modo de ler segundo um olhar especificamente filosófico. Como a filosofia não tem a prerrogativa da criticidade ou da inteligência sobre as outras disciplinas, tal leitura é a que mostra ter interiorizado um quadro mínimo de referências teóricas do trabalho da filosofia. Além dessa obviedade, um tanto redundante, a lista de competências é conhecida, tendo inclusive um sabor de utopia, à qual, entretanto, não nos cabe renunciar. Em conformidade com as Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, cabe destacar competências relativas a (1) representação e comunicação, (2) investigação e compreensão e (3) contextualização sociocultural. Entretanto, vale a pena consultar as Orientações para um adequado detalhamento de tais competências, cabendo observar que também devem traduzir as competências adquiridas pelo docente.

JP – Que tipo de metodologia os professores podem utilizar para convidar os alunos à prática da reflexão? O senhor poderia citar pelo menos duas atividades em sala de aula?

JCS – Em casos extremos, temos observado que um professor mal formado consegue extrair de um texto de Kant apenas banalidades e mesmo muitos erros, enquanto um professor bem formado pode provocar reflexões interessantes a partir de um poema. Um professor mal formado pode provocar desastres com um texto de Aristóteles ou de Descartes, enquanto um bom professor pode fazer milagres com qualquer peça cultural, até mesmo com uma bula de remédio. Repetimos, então, que a mera metodologia, sem formação adequada, pode ser desastrosa, enquanto uma boa formação do docente pode favorecer um tratamento de outros elementos que não os estritamente ligados aos textos clássicos. Nesse sentido, podemos sugerir duas atividades distintas, ambas distintas da mera análise direta de textos filosóficos, que certamente deve sempre ser trabalhada, mesmo em conjunto com esses outros caminhos, pois não devemos privar os alunos de peças clássicas de nosso patrimônio cultural, sendo possível o debate de temas pela análise de textos clássicos. É valiosa nesse sentido a iniciativa da Secretaria de Educação do Paraná, que está produzindo uma antologia de textos clássicos, a ser disponibilizada irrestritamente.

Vou sugerir, porém, dois outros caminhos. Um deles consistiria em partir da reflexão sobre objetos culturais, como peças literárias ou objetos artísticos que estejam sendo trabalhados pelos alunos em outras disciplinas, separando os aspectos de posicionamento e argumentação filosóficos. Imagino, por exemplo, até onde pode chegar uma turma com a leitura de O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro.

Um outro caminho seria voltar-se a uma característica especial da formação dos estudantes nesse nível específico de escolaridade. O ensino médio é sobretudo o momento de construção de uma narrativa da causalidade. Nossa visão errática da natureza e da história é então substituída pela de um mundo passível de explicação teórica, quase infenso ao acaso. Assim, da queda dos corpos à queda dos governos, teorias se afirmam, sendo a vivência dessas teorias plena de implicações e opções filosóficas. Creio que esses dois caminhos (a partir dos quais atividades podem ser pensadas) podem contribuir especialmente para que a filosofia deixe de ser um corpo estranho ao ensino médio.

(Renata Chamarelli)

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