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JORNAL
Edição 74 - Educação em Prisões
06/07/2012
 
ou

Roberto da Silva (USP): "Educação nas prisões deve ser presencial"

A prisão é a última grande fronteira a ser transposta pela educação

A prisão é a última grande fronteira a ser transposta pela educação

Autor:Arquivo pessoal


Na visão do professor Roberto da Silva, ex-interno da antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), de São Paulo, e ex-detento do sistema penitenciário, a educação deve qualificar o preso para que ele possa competir pelas oportunidades em condições de igualdade com as demais pessoas. Para ele, a retomada dos estudos não pode ser encarada pelos detentos como uma obrigação. “É preciso que ele consiga situar os estudos dentro de um certo projeto de vida e que seja valorizado o saber que ele construiu”, afirma.

Silva defende a oferta de educação nas prisões de forma presencial, por considerar que mais importante do que a escolarização é a retomada do hábito de estudar, o gosto pela leitura e pela troca de experiências, entre outros pontos.

Professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Roberto da Silva é mestre e doutor em pedagogia e livre docente em pedagogia social. Entre os projetos que desenvolve está a pesquisa Iniciação Científica na USP como Fundamento para Orientação Técnica e Profissional para Adolescentes da Fundação Casa [Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente].

Com vários livros e artigos publicados, Silva participa do conselho editorial da Revista de Ciências da Educação, do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal), e dos Cadernos de Pedagogia Social, de Portugal. É o primeiro presidente da Associação Brasileira de Pedagogia Social (Abrap-Social), entidade que preside desde 2010.

Jornal do Professor — Qual a importância de se oferecer educação nas prisões?

Roberto da Silva — Como direito fundamental de todo ser humano, a prisão é a última grande fronteira a ser transposta pela educação, que já atende todo o leque de diversidades possíveis na realidade brasileira. Deve-se ter o cuidado, entretanto, de não atribuir à educação funções que não são dela, como diminuição da violência, da reincidência, de fugas e mortes. E, principalmente, a conversão de presos. O que a educação tem como sua tarefa é a qualificação do preso para que ele possa competir pelas oportunidades socialmente criadas em condições de igualdade com as demais pessoas.

JP — Além de aulas de ensino básico, também devem ser oferecidas aulas de ensino profissional ou técnico?

RS — A modalidade preferencial para oferta de educação nas prisões tem sido a educação de jovens e adultos (EJA), mas não pode ser a mera transposição do modelo aplicado no sistema regular de ensino. Há pelo menos três situações que precisam ser enfrentadas: a alfabetização; a efetivação do direito à educação para quem não concluiu o ensino fundamental na idade apropriada, que é a maioria, e a elevação da escolaridade, articulada com a educação técnica e profissional.

JP — A oportunidade de estudar é importante para uma pessoa que está na prisão?

RS — É importante, mas a educação sofre uma grande concorrência com o trabalho, pelas vantagens que este oferece. Mesmo com a concessão do direito à remição da pena pelos estudos, uma parcela pequena de presos procura voluntariamente a escola para a matrícula e a frequenta regularmente.

JP — O ensino oferecido nas prisões deve ocorrer no modo presencial ou a distância?

RS — Dada a condição de absoluta disponibilidade de tempo que o preso tem, é importante que a educação seja presencial, pois não só a escolarização importa, mas também a retomada do hábito de estudar, a aquisição da cultura do estudo, o gosto pela leitura, pela troca de experiências e pelo aprendizado coletivo. A educação a distância deve ser reservada a situações em que a aula presencial é inviável, como em casos de autorização de saída para frequentar o ensino superior, apoio ao ensino presencial ou meio de familiarização do preso com as novas tecnologias educacionais. Nunca como substituta das aulas presenciais.

JP — De que maneira sua experiência como ex-interno da antiga Febem e do sistema penitenciário contribui para o desenvolvimento das aulas ou para o relacionamento com os alunos?

RS — Em 15 anos de Febem, estudei apenas até a quinta série do ensino fundamental. Em quase dez anos de prisão, não acrescentei um ano de escolaridade sequer, pois não havia oferta da educação. Isso não me impediu de estudar como autodidata e depois, em liberdade, quando voltei a estudar para fazer o supletivo de 1º e 2º graus e, em seguida a universidade. Tenho clareza de que não voltei para a sala de aula para aprender, na expectativa de que ela pudesse me ensinar alguma coisa. Voltei à escola para buscar reconhecimento e certificação dos saberes que construí no mundo da vida. E retomei os estudos porque fazia um trabalho comunitário, queria reconhecimento profissional para ele, aumentar minha capacidade de interlocução com os setores que me interessavam e, sobretudo, profissionalizar meu trabalho. Isso me ensinou que a retomada dos estudos, o retorno à escola por parte do preso, não pode ser encarada como uma obrigação, até porque, para o adulto, a frequência escolar não é obrigatória. É preciso que ele sinta a necessidade, que ele consiga situar os estudos dentro de um certo projeto de vida e que seja valorizado o saber que ele construiu.

JP — Há alguma qualidade ou capacidade específica fundamental dos professores que dão aulas em prisões?

RS — Sem dúvida que há. Começa pela revisão dos próprios conceitos e preconceitos, pela revisão do que entende por crime, pena e prisão. Leva um tempo para que o profissional da educação descubra que por trás do condenado existe um ser humano que tem saberes muito particulares; que por trás do crime cometido há sempre fatores que vão além da motivação pessoal. E que a prisão é um lugar onde também se pode ensinar e aprender. Dentre todo o quadro de profissionais que atuam na prisão, professor é o que tem a melhor imagem diante dos presos, o mais bem quisto e tido como o mais confiável. Bem-querença esta que se estende aos presos que atuam como monitores de educação. Essa boa representação que o preso tem sobre o professor deve-se ao fato de que este não é visto como um agente do sistema, como alguém que está ali para vigiar, punir ou informar autoridades e juízes quanto ao seu comportamento.

JP — Que metodologia deve ser usada para a melhor aprendizagem dos presos?

RS — Considerando as três situações citadas — a alfabetização, o exercício do direito à educação e a elevação da escolaridade, articulada com a educação técnica e profissional —, não há uma metodologia única capaz de suprir diferentes necessidades, mas há abordagens que podem ser aplicadas às três situações. A primeira, considerar que o adulto preso já construiu uma certa “leitura de mundo”, ainda que rudimentar, antes de aprender a decifrar códigos e símbolos linguísticos. Então, a alfabetização e a pós-alfabetização precisam partir desses saberes com vistas a aprimorar essa “leitura de mundo”, torná-la mais sistemática, mais crítica e mais consciente. A segunda, que o exercício do direito à educação seja encarado como uma ação afirmativa, isto é, como a restituição de um direito negado no passado. A perspectiva de resgatar um direito negado é mais interessante do que estudar por obrigação ou por exigência do mercado de trabalho ou da sociedade. A terceira, a articulação entre elevação da escolaridade e profissionalização precisa ter como lócus privilegiado o local de trabalho do preso, servindo a sala de aula apenas e tão-somente para planejamento das atividades e sistematização dos conhecimentos adquiridos.

JP — Há um alto índice de analfabetos nos presídios?

RS — Em torno de 11%, no Brasil.

JP — Há muita desistência ou evasão nas turmas formadas?

RS — Sim, e na maioria das vezes por questões internas da própria unidade prisional, como dificuldades para tirar o preso da cela, audiências, transferências e castigos disciplinares.

JP — Como funciona o ensino dentro das prisões?

RS — Cada estado tem autonomia na oferta da educação em prisões. Em alguns, ela é oferecida pela secretaria estadual de educação, como ordenam as diretrizes nacionais para a oferta de educação em estabelecimentos penais. Em outros, é oferecida por meio de organizações não governamentais ou fundações estaduais, como é o caso de São Paulo. O que se quer, atualmente, é que a educação nas prisões seja uma responsabilidade do Estado, por meio das secretarias de educação e da entidade que administra as prisões, com profissionais do quadro da carreira do magistério, financiamento público, via Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação], inclusão no censo escolar e certificação por parte da secretaria da educação.

JP — Quais os estados que desenvolvem experiências bem-sucedidas?

RS — Antes da aprovação das diretrizes nacionais, encontramos em Mato Grosso do Sul uma situação muito favorável para transformar a educação nas prisões em uma política pública. Ali já existia uma escola-polo que desenvolvia esse trabalho, com um quadro de diretores, coordenadores e professores. Havia normativas tanto da secretaria de educação quanto do conselho estadual de educação. O estado, entretanto, não oferecia a educação em todas as unidades prisionais, nem conseguia atender a todos os presos que quisessem estudar. Em um mesmo estado pode haver experiências positivas, mas são pontuais, localizadas, o que não chega a constituir uma política pública de educação. É o caso das turmas de alfabetização em Pernambuco, a presença da universidade na Paraíba, o ensino superior em Minas Gerais, a atuação de presos como monitores de educação em São Paulo, a profissionalização em Guarapuava, no Paraná etc.

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