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JORNAL
Edição 127 - Alfabetização nos Anos Iniciais
27/07/2016
 
ou

Artur Gomes de Morais (UFPE): “A alfabetização é um processo complexo, que não se conclui em um ano letivo”

“Alfabetizar é uma tarefa complexa

“Alfabetizar é uma tarefa complexa", diz o professor Artur Morais

Autor:Arquivo pessoal


Psicólogo, com mestrado e doutorado em psicologia, Artur Gomes de Morais é professor titular do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Na universidade, ele atua também no Centro de Estudos em Educação e Linguagem (Ceel), que tem por objetivo colaborar com ações de formação de professores alfabetizadores e de língua portuguesa, além de produzir pesquisas e materiais didáticos ligados ao ensino da língua materna.

Em entrevista ao Jornal do Professor, Artur Morais diz que a alfabetização é um processo complexo, que não se conclui em um ano letivo. “Passamos a considerar alfabetizado o indivíduo que não só domina o sistema de escrita alfabética (SEA), capaz de escrever ou ler palavrinhas, mas aquele que consegue, sozinho, ler, compreender e produzir textos dos gêneros escritos com os quais teve oportunidade de conviver”, ressalta.

Ele defende a formação continuada dos alfabetizadores e destaca a importância do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic). “Penso que o Pnaic representa uma política pública de real formação continuada dos alfabetizadores de nossas escolas públicas”, diz.

Para Artur, alfabetizar é uma tarefa complexa. “Sabemos que, mesmo nas faculdades de pedagogia em que há disciplinas específicas sobre o ensino de alfabetização, os profissionais recém-formados têm muito o que aprender para se tornarem, a cada ano, melhores alfabetizadores”, justifica. (Fátima Schenini)

Jornal do Professor O que pode ser considerado uma boa alfabetização e qual a sua importância para a educação?

Artur Gomes de Morais — Hoje, é quase consensual que, para considerarmos uma criança alfabetizada, não podemos exigir apenas que ela saiba ler e escrever palavras soltas. Passamos a considerar alfabetizado o indivíduo que não só domina o sistema de escrita alfabética (SEA), capaz de escrever ou ler palavrinhas, mas aquele que consegue, sozinho, ler, compreender e produzir textos dos gêneros escritos com os quais teve oportunidade de conviver. Por exemplo, histórias, relatos de experiências pessoais, avisos, convites, poemas etc. Assim, é preciso deixar claro que, atualmente, a alfabetização é vista como um processo complexo, que não se conclui em um ano letivo, nem mesmo para as crianças de classe média. Insistimos que, quando o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic) propõe um ciclo de três anos, o faz porque está adotando a atual e exigente concepção de alfabetização, aquela concepção que está subjacente à proposta de alfabetizar letrando.

Uma boa alfabetização é aquela que, desde o final da educação infantil, permite ao aprendiz viver uma curiosa e prazerosa experiência com os gêneros textuais escritos e com as palavras que estão no mundo. Não se trata de alfabetizar aos cinco anos, mas de garantir para todas as crianças pobres, tal como acontece na classe média, viver, na escola, jogos e situações lúdicas de reflexão sobre palavras e participar de rodas de leitura e de escrita coletiva de textos, nas quais vão desenvolvendo habilidades de compreensão leitora e de produção de textos, mesmo antes de saberem ler e escrever de modo convencional. A importância disso está em assegurarmos a democratização do acesso ao mundo da escrita e acabarmos com o fracasso que só atinge os filhos das camadas pobres.

Quais os principais métodos de alfabetização existentes e quais seus pontos positivos e negativos? O que mudou nos últimos anos?

— Até os anos 1980, tínhamos, basicamente, dois grupos de métodos de alfabetização. De um lado, estavam os de base sintética (silábicos, fonêmicos e alfabéticos), que partiam de unidades menores (sílabas, fonemas ou letras) e, de forma cumulativa, faziam um treino para a criança memorizar aquelas unidades e, muito controladamente, poder ler palavras, para depois ler frases e, um dia, certamente após o primeiro ano letivo, ler textos. De outro lado, na disputa, estavam os métodos analíticos (palavração, sentenciação e global ou dos contos), os quais, apesar de partirem daquelas unidades maiores, chegavam no mesmo treinamento memorístico de sílabas ou letras. Além de conceberem a criança como um passivo receptor de informações prontas, todos os seis métodos impediam que ela tivesse contato com os textos do mundo real e pudesse avançar em seus conhecimentos sobre o mundo letrado. Nas três últimas décadas, oscilamos bastante e vivemos o que a professora Magda Soares chamou “desmetodização” da alfabetização, quando se difundiu uma errônea ideia de que a criança, espontaneamente e sem ensino sistemático, avançaria nas fases da psicogênese e chegaria a uma hipótese alfabética. Vivemos, também, o que chamei de “ditadura do texto”, um equívoco que levava certos pesquisadores ou docentes a acreditar que não era adequado ou necessário refletir com as crianças sobre palavras, sílabas ou letras para que elas se apropriassem do SEA. Além disso, assistimos a tentativas de certos grupos privados de ressuscitar métodos fônicos e vendê-los como a salvação para o fracasso na alfabetização.

Nos últimos 15 anos, temos avançado bem na direção de superar essas distorções. Passamos a ver a necessidade de alfabetizar com método. Sim, de termos metodologias que garantam tanto o ensino sistemático da escrita alfabética quanto o ensino das práticas de leitura e produção de textos escritos, ao lado da promoção da oralidade dos alfabetizandos. Mais recentemente, temos assumido que a ideia de alfabetizar letrando exige trabalhar tanto com palavras (e suas partes menores) quanto com textos (variados e não artificiais). Precisamos avançar ainda sobre como praticar um ensino que atenda à diversidade de saberes e ritmo dos aprendizes. Esse é um ponto essencial para que as metodologias de alfabetização consigam tornar a ideia de ciclo uma realidade, não um discurso cheio de boas intenções.

Os professores já saem preparados das instituições superiores de ensino para atuar na alfabetização de alunos ou é necessário que façam cursos de especialização voltados para essa área? Como capacitar professores que já estejam trabalhando?

— Alfabetizar é uma tarefa complexa. Sabemos que, mesmo nas faculdades de pedagogia em que há disciplinas específicas sobre o ensino de alfabetização, os profissionais recém-formados têm muito o que aprender para se tornarem, a cada ano, melhores alfabetizadores. Estou falando tanto de saberes teóricos quanto didáticos, isto é, de operacionalização pedagógica. Assim, sem desconsiderar o bem que pode trazer para uma professora o fato de ela cursar uma especialização em alfabetização, a discussão sobre a prática, a tematização sobre o que cada alfabetizador vai fazendo, no dia a dia, na sua sala de aula, precisa se conjugar com a leitura e a apropriação de temas teóricos sobre o aprendizado da escrita alfabética e sobre leitura e produção de textos orais e escritos. Isso requer não capacitações ou cursos pontuais, mas uma política que permita aos alfabetizadores (de primeiro, segundo e terceiro anos) viver, com uma periodicidade regular, encontros de formação continuada para que, neles, além de discutir textos teóricos, debatam sobre o que vêm praticando, sobre o que tem dado certo com os alunos, sobre o que não tem funcionado como esperavam e possam planejar e avaliar suas ações, de modo que cada rede e cada escola tenham um projeto de ação verdadeiramente coletivo.

Que materiais devem ser usados na alfabetização (livros, computador, revistas etc.)?

— Somos radicalmente contra a utilização do que costumam chamar materiais estruturados — pacotes fechados, que obrigam todos os professores de uma rede de ensino a fazer as mesmíssimas atividades, a cada dia, desrespeitando tanto as experiências e saberes dos docentes quanto a heterogeneidade dos aprendizes. Entendemos que, nas salas do ciclo de alfabetização, precisamos ter diversos materiais impressos (livros de literatura infantil e outros livros infantis, revistinhas, jornais, cartazes etc.), além, obviamente, dos livros didáticos aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Claro que é desejável que as crianças também possam ler e escrever em computadores ou tablets e viver, por exemplo, a leitura coletiva de um livro infantil projetado na parede porque foi salvo em formato pdf. Além disso, não podemos esquecer que os textos escritos pelos alunos, individual ou coletivamente, também precisam ser vistos como materiais para o ensino (por exemplo, através da revisão textual) e que certos jogos são excelentes aliados na hora de alfabetizar.

Qual a contribuição que jogos e outras atividades lúdicas podem dar à alfabetização?

— Nós, do Ceel da UFPE, temos reservado um lugar especial para os jogos de alfabetização, os quais, cremos, devem ser usados desde o final da educação infantil. Já desenvolvemos, há alguns anos, uma caixa chamada Jogos de Alfabetização, com dez opções, posta à disposição do Ministério da Educação e, felizmente, distribuída a todos os municípios brasileiros. Ela tem obtido excelente aceitação por parte dos professores alfabetizadores. Por quê? Ao mesmo tempo em que encerram a dimensão lúdica, os jogos que defendemos ajudam as crianças, efetivamente, a avançar na apropriação do sistema de escrita alfabética. Por um lado, temos jogos que dão prioridade ao desenvolvimento de habilidades de consciência fonológica, necessárias para a compreensão do SEA. Neles, brincando, as crianças pensam sobre quantas sílabas cada palavra tem, buscam palavras que rimem ou que comecem de forma parecida, procuram palavras dentro de palavras, como vela dentro de fivela. Em outros jogos, as crianças são ajudadas a dominar as relações entre letra e som. Brincam, por exemplo, de descobrir palavras a partir da introdução de uma nova letra, como no caso de fazer a palavra pato virar prato, ou brincam de descobrir palavras, ao mudar apenas uma letra (a partir de bola, é possível criar mola, gola, sola, cola). A criança aprende refletindo e brincando, vivendo situações muito prazerosas. No momento, concluímos uma outra caixa, com jogos de alfabetização voltados para a inclusão de crianças com deficiência. Esperamos que ela seja também acolhida pelo MEC e distribuída a todas as redes públicas de ensino.

Qual sua opinião sobre o Pnaic? Que benefícios ele pode trazer?

— Fiquei feliz com a implantação do Pnaic e com sua realização em 2013, 2014 e 2015. Conclamo os educadores a cobrar do MEC a continuidade do programa. O Pnaic conseguiu definir, pela primeira vez, os direitos de aprendizagem a serem garantidos às crianças de todas as redes públicas do país nos três anos do primeiro ciclo do ensino fundamental, na busca por assegurar tanto uma progressão do que elas devem aprender, a cada ano, quanto um cuidado em atender à heterogeneidade dos aprendizes. Ao lado desse esforço de definição de um currículo, baseado numa atualíssima concepção de alfabetização — alfabetizar letrando —, penso que o Pnaic representa uma política pública de real formação continuada dos alfabetizadores de nossas escolas públicas com uma série de qualidades.

Em primeiro lugar, eu ressaltaria o financiamento, pelo governo federal, das ações do Pnaic. Mesmo nos municípios mais pobres, podemos sonhar com a efetivação de uma formação de fato continuada, que permita aos professores estudar, se reunir e planejar periodicamente. Em segundo lugar, além da participação das universidades públicas no processo, parece fundamental a criação, em cada rede de ensino, de equipes responsáveis pela formação continuada dos alfabetizadores. Sim, o fato de cada rede formar seus coordenadores e orientadores de estudos do Pnaic permite pensar na autonomia das equipes de educadores de cada município para o desenvolvimento de um trabalho continuado e coletivo, independentemente das mudanças de gestores a cada quatro anos ou das imposições de grupos privados. Por fim, ressalto a qualidade pedagógica da proposta e dos materiais didáticos que ela envolve. Além de respeitar o professor, não o obrigando a usar materiais padronizados, como fazem certos sistemas de ensino, apostilados ou métodos fônicos, que querem impor, em cada rede, formas únicas de alfabetizar, o Pnaic prima por discutir o miudinho do cotidiano do processo de alfabetização, estimula o professor a criar práticas próprias de ensino e a usar, ademais, os ricos materiais que têm chegado às escolas, através de programas como o PNBE e o PNLD-Materiais Complementares. Por tudo isso, seria uma irracionalidade não dar continuidade a uma ação tão séria e promissora.

Saiba mais sobre o Centro de Estudos em Educação e Linguagem (Ceel) da UFPE

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